O Globo
Livros não são objetos mortos. Contêm uma
potência de vida tão vibrante quanto a alma que os criou
Felizmente, nem tudo pode estar em todo
lugar ao mesmo tempo, como pretende o filme multicampeão de Oscars de 2023. Há
coisas que merecem ser contadas com vagar para ser sorvidas em profundidade.
Assim fez Erich Maria Remarque quase cem anos atrás ao publicar sua obra-prima
literária “Nada de novo no front”. A primeira edição, de 1929, esgotou-se no
mesmo dia e, ao final daquele ano, mais de 1 milhão de cópias já haviam sido
lidas com reverência. Até hoje Remarque continua sendo, ao lado de Goethe, o
escritor de língua alemã mais lido no mundo.
O livro, como se aprende na escola, é baseado na vivência do autor como soldado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O narrador é um jovem recruta, Paul Bäumer, que parte para a guerra voluntariamente ao lado de colegas de classe. Encontra a face do horror daquela que, com razão, é chamada de “A Grande Guerra”. No livro, combatentes se arrastam em trincheiras de lama e sangue, convivem com restos humanos pendurados em arame, cavalos são esturricados por bombas, explodem feio, e a soldadesca, ora faminta à beira da loucura, ora convulsionada por gases venenosos, vai silenciando. Poucos saem da narrativa com vida. O próprio protagonista, Bäumer, morre poucos dias antes da assinatura do Armistício que, na vida real, pôs fim à carnificina de mais de 40 milhões. Foi todo um mundo que ruiu e que Erich Maria Remarque compreendeu e descreveu sem retórica.
Recebido de braços abertos por seu caráter
pacifista e apolítico, o livro foi transformado em roteiro de filme e estreou
nas telas em tempo recorde — pouco mais de 12 meses depois de publicado.
Na exibição do dia 5 de dezembro de 1930, a
sala do Mozart Hall de Berlim estava
abarrotada. De repente, saindo do nada, uma tropa de 150 “camisas marrons”
nazistas tomou de assalto a sala aos gritos de “Filme de judeu!”. Comandados
pela figura reptiliana de Joseph Goebbels, jogaram bombas de efeito moral no
público, soltaram ratazanas no auditório, destruíram equipamentos e surraram
quem imaginavam ser judeu.
— Em apenas dez minutos o cinema virou
manicômio — descreveu Goebbels em seu diário.
O futuro chefe da Propaganda de Hitler
havia percebido no humanismo de “Nada de novo no front” uma ameaça mortal para
a ideologia nazista. Em pouco tempo, o Conselho Supremo de Censura proibiu a
exibição do filme na Alemanha. Era apenas o começo. Na noite de 10 de maio de
1933, com Hitler instalado no poder havia apenas quatro meses, uma multidão
estimada em 40 mil cidadãos assistiu a um fogaréu gigantesco na Praça da Ópera
de Berlim. Eram perto de 25 mil livros, arrancados de livrarias, bibliotecas e
residências por paramilitares da SS, que ali arderam até virar cinzas. Não
apenas em Berlim, como noutras 30 cidades universitárias do país. De Erich
Maria Remarque a Zola, de Freud a Thomas Mann, de Einstein a H.G. Wells, mais
de 150 autores alemães e estrangeiros foram considerados heréticos à pureza
nacional.
— É a limpeza do espírito germânico —
festejou Goebbels.
Entre aqueles cujas obras foram incineradas
estava também Heinrich Heine, gigante poeta alemão do século XIX.
— Onde quer que se queimem livros, ao final
também seres humanos serão queimados — escrevera ele, presciente, na peça
“Almansor”.
Assim foi, como se viu de forma trágica nos
campos de extermínio do Terceiro Reich de Hitler. (Apesar de não ser judeu nem
comunista, Erich Maria Remarque conseguiu sair da Alemanha a tempo. Sua irmã
caçula, Elfriede, presa pela Gestapo e submetida a um julgamento de fachada,
terminou decapitada na guilhotina em 1943.)
Aprendemos com os grandes pensadores que
livros não são objetos mortos. Contêm uma potência de vida tão vibrante quanto
a alma que os criou. Por isso existe uma simbologia tão gritante na sanha
milenar de autoritários (seculares ou religiosos) em queimar livros: a ilusão
vã de destruir ideias.
O remake de “Nada de novo no front”, do
diretor Edward Berger, vencedor de quatro Oscars no domingo passado, é
portentoso. Até demais. Fiel à narrativa contida do protagonista do livro,
Erich Maria Remarque acrescentara à edição em inglês um epílogo igualmente
lacônico para a morte de seu personagem:
— Ele caiu em outubro de 1918, num dia tão
calmo e silencioso na frente de combate que o registro do Exército se limitou a
uma única frase: “Tudo tranquilo no front ocidental”.
No filme, o bravo soldado Bäumer, que no
livro gradualmente vai despertando para a futilidade da guerra — de qualquer
guerra —, morre em cena repleta de pirotecnia bélica, sem ter compreendido por
que morria naquele descampado de Flandres.
Ainda assim, filme e livro são atualíssimos — basta olhar para as trincheiras na Ucrânia. Nada de novo no front.
Perfeito! Sensível! Maravilhoso!
ResponderExcluirParabéns à autora e ao blog que divulga seu trabalho!
Excelente.
ResponderExcluirFrase do governo da Frente Democrática: Tudo Tranquilo!
ResponderExcluirExcelente artigo, estou lendo novamente o livro. Excelente pesquisa da autora.Parabéns.
ResponderExcluirMuito bom o artigo da grande colunista.
ResponderExcluirMuito oportuna a lembrança pela excelente jornalista do papel do ministro da propaganda, sob a fachada do patriotismo exacerbado e outras verdadeiras besteiras foi o grande ideólogo da tragédia nazista e ao assassinou toda a família e suicidou-se juntamente com a esposa patriotária.Naquela época ainda não se conhecia muito bem a Flórida.”Esquecer o passado é condenar-se a repetí-lo “
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