domingo, 19 de março de 2023

Dorrit Harazim - Nada de novo

O Globo

Livros não são objetos mortos. Contêm uma potência de vida tão vibrante quanto a alma que os criou

Felizmente, nem tudo pode estar em todo lugar ao mesmo tempo, como pretende o filme multicampeão de Oscars de 2023. Há coisas que merecem ser contadas com vagar para ser sorvidas em profundidade. Assim fez Erich Maria Remarque quase cem anos atrás ao publicar sua obra-prima literária “Nada de novo no front”. A primeira edição, de 1929, esgotou-se no mesmo dia e, ao final daquele ano, mais de 1 milhão de cópias já haviam sido lidas com reverência. Até hoje Remarque continua sendo, ao lado de Goethe, o escritor de língua alemã mais lido no mundo.

O livro, como se aprende na escola, é baseado na vivência do autor como soldado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O narrador é um jovem recruta, Paul Bäumer, que parte para a guerra voluntariamente ao lado de colegas de classe. Encontra a face do horror daquela que, com razão, é chamada de “A Grande Guerra”. No livro, combatentes se arrastam em trincheiras de lama e sangue, convivem com restos humanos pendurados em arame, cavalos são esturricados por bombas, explodem feio, e a soldadesca, ora faminta à beira da loucura, ora convulsionada por gases venenosos, vai silenciando. Poucos saem da narrativa com vida. O próprio protagonista, Bäumer, morre poucos dias antes da assinatura do Armistício que, na vida real, pôs fim à carnificina de mais de 40 milhões. Foi todo um mundo que ruiu e que Erich Maria Remarque compreendeu e descreveu sem retórica.

Recebido de braços abertos por seu caráter pacifista e apolítico, o livro foi transformado em roteiro de filme e estreou nas telas em tempo recorde — pouco mais de 12 meses depois de publicado.

Na exibição do dia 5 de dezembro de 1930, a sala do Mozart Hall de Berlim estava abarrotada. De repente, saindo do nada, uma tropa de 150 “camisas marrons” nazistas tomou de assalto a sala aos gritos de “Filme de judeu!”. Comandados pela figura reptiliana de Joseph Goebbels, jogaram bombas de efeito moral no público, soltaram ratazanas no auditório, destruíram equipamentos e surraram quem imaginavam ser judeu.

— Em apenas dez minutos o cinema virou manicômio — descreveu Goebbels em seu diário.

O futuro chefe da Propaganda de Hitler havia percebido no humanismo de “Nada de novo no front” uma ameaça mortal para a ideologia nazista. Em pouco tempo, o Conselho Supremo de Censura proibiu a exibição do filme na Alemanha. Era apenas o começo. Na noite de 10 de maio de 1933, com Hitler instalado no poder havia apenas quatro meses, uma multidão estimada em 40 mil cidadãos assistiu a um fogaréu gigantesco na Praça da Ópera de Berlim. Eram perto de 25 mil livros, arrancados de livrarias, bibliotecas e residências por paramilitares da SS, que ali arderam até virar cinzas. Não apenas em Berlim, como noutras 30 cidades universitárias do país. De Erich Maria Remarque a Zola, de Freud a Thomas Mann, de Einstein a H.G. Wells, mais de 150 autores alemães e estrangeiros foram considerados heréticos à pureza nacional.

— É a limpeza do espírito germânico — festejou Goebbels.

Entre aqueles cujas obras foram incineradas estava também Heinrich Heine, gigante poeta alemão do século XIX.

— Onde quer que se queimem livros, ao final também seres humanos serão queimados — escrevera ele, presciente, na peça “Almansor”.

Assim foi, como se viu de forma trágica nos campos de extermínio do Terceiro Reich de Hitler. (Apesar de não ser judeu nem comunista, Erich Maria Remarque conseguiu sair da Alemanha a tempo. Sua irmã caçula, Elfriede, presa pela Gestapo e submetida a um julgamento de fachada, terminou decapitada na guilhotina em 1943.)

Aprendemos com os grandes pensadores que livros não são objetos mortos. Contêm uma potência de vida tão vibrante quanto a alma que os criou. Por isso existe uma simbologia tão gritante na sanha milenar de autoritários (seculares ou religiosos) em queimar livros: a ilusão vã de destruir ideias.

O remake de “Nada de novo no front”, do diretor Edward Berger, vencedor de quatro Oscars no domingo passado, é portentoso. Até demais. Fiel à narrativa contida do protagonista do livro, Erich Maria Remarque acrescentara à edição em inglês um epílogo igualmente lacônico para a morte de seu personagem:

— Ele caiu em outubro de 1918, num dia tão calmo e silencioso na frente de combate que o registro do Exército se limitou a uma única frase: “Tudo tranquilo no front ocidental”.

No filme, o bravo soldado Bäumer, que no livro gradualmente vai despertando para a futilidade da guerra — de qualquer guerra —, morre em cena repleta de pirotecnia bélica, sem ter compreendido por que morria naquele descampado de Flandres.

Ainda assim, filme e livro são atualíssimos — basta olhar para as trincheiras na Ucrânia. Nada de novo no front. 

6 comentários:

  1. Perfeito! Sensível! Maravilhoso!
    Parabéns à autora e ao blog que divulga seu trabalho!

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  2. Frase do governo da Frente Democrática: Tudo Tranquilo!

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  3. Excelente artigo, estou lendo novamente o livro. Excelente pesquisa da autora.Parabéns.

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  4. Muito bom o artigo da grande colunista.

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  5. Muito oportuna a lembrança pela excelente jornalista do papel do ministro da propaganda, sob a fachada do patriotismo exacerbado e outras verdadeiras besteiras foi o grande ideólogo da tragédia nazista e ao assassinou toda a família e suicidou-se juntamente com a esposa patriotária.Naquela época ainda não se conhecia muito bem a Flórida.”Esquecer o passado é condenar-se a repetí-lo “

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