sábado, 11 de março de 2023

Eduardo Affonso - A mulher invisível

O Globo

E se ela escolher continuar onde estiveram sua mãe, suas avós e bisavós? Esta não parece ser uma opção válida

Há até bem pouco tempo, dizia-se que, por trás de um grande homem, havia sempre uma grande mulher. A frase era simultaneamente um elogio — o reconhecimento de que um grande homem não se faz sozinho — e um reforço à ideia — preconceituosa, machista — de que à mulher, por maior que fosse, cabia o segundo plano.

Lugar de mulher, já se sabe, é onde ela quiser. Mas... e se ela escolher continuar onde estiveram sua mãe, suas avós e bisavós? Esta não parece ser uma opção válida. Mulheres conservadoras passaram a ser vistas como traidoras da causa da libertação feminina, não como suas beneficiárias. O fato de estarem onde estão por vontade própria, não mais por obrigação, soa irrelevante.

Em contrapartida, no campo progressista, há as que posam de libertárias — mesmo devendo sua projeção aos sagrados laços do matrimônio (com algum daqueles grandes homens do primeiro parágrafo). Não faltam as que se prestem ao papel de preposto nas suplências do Legislativo ou nos conselhos dos Tribunais de Conta. Será que percebem o paradoxo?

Paradoxal mesmo é que mulheres colaborem, em nome da necessária luta pela igualdade de gêneros, com o apagamento da palavra “mulher”.

O Diário Oficial, na edição de 8 de março (Dia Internacional da Mulher), publicou o Decreto 11.432, que regulamenta o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. A oferta gratuita de absorventes e outros itens de saúde há de contribuir para mitigar, nas mulheres de baixa (ou nenhuma) renda, constrangimentos e desconfortos no período menstrual, além de reduzir o absenteísmo escolar e no trabalho.

Porém, a não ser na menção a um ministério, a palavra “mulher” não aparece uma única vez no decreto. Foi substituída pelas locuções “pessoa que menstrua” e “pessoa em situação de precariedade menstrual” (!).

O circunlóquio tem razão de ser: para atender às demandas das pautas identitárias, faz-se necessário especificar mulheres cis, homens trans, pessoas não binárias, pessoas intersexo etc. Ou juntar tudo num balaio só.

Seria interessante ver a reação da revolucionária dos anos 1960 e 70, que queimou sutiã, que se engajou no Women’s Liberation Front, se soubesse que, poucas décadas depois, a palavra “mulher”, em vez de ganhar força, se tornaria sensível demais. E que ela seria referida em teses, manifestos e documentos oficiais como “pessoa que menstrua”, “pessoa lactante”, “pessoa com vulva”, “indivíduo com cérvix”.

Será que era tão difícil, para incluir pouco mais de 1% da população (trans masculinos e não binários), usar a fórmula “mulheres e demais pessoas que menstruam”? O slogan oficial diz que “as mulheres voltam a ser respeitadas neste país”; a prática as mostra reduzidas a portadoras de um órgão aqui, excretoras de uma substância ali, detentoras de uma reentrância acolá.

A transfobia existe — vide a patética bufonaria do deputado que caricaturou a questão trans com uma peruca loura. Mas é possível dar visibilidade aos transgêneros sem apagar as mulheres.

Como bem lembrou Laïs Mendes Pimentel, antigamente não se falava “menstruação”: mulher tinha “regra”. Agora a regra é falar “menstruação” — e evitar a palavra “mulher”.

 

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