sexta-feira, 10 de março de 2023

Fabio Giambiagi - Reavaliar pobreza é necessário

O Globo

Bolsonaro foi uma aberração, mas não faz sentido repetir que 15% da população vive como se estivéssemos na Somália

O desemprego no Brasil em 2018 era de 12% e a subutilização de mão de obra, de 24%. E, apesar dos números elevados, não se falava em fome. Em 2022, essas taxas caíram para 9% e 21%, respectivamente. Em 2018, nosso índice de Gini da distribuição do rendimento domiciliar per capita era de 0,55. E ninguém falava em fome.

Em 2021, ele tinha caído para 0,54 (uma pequena redução da desigualdade). O IBGE publica a Síntese de Indicadores Sociais (SIS). “Pobreza extrema” e “pobreza” podem ser medidos olhando para esses indicadores. A proporção de pessoas por classe de rendimento domiciliar per capita com menos de US$ 1,9 diários pela Paridade do Poder de Compra (PPC) aumentou de 4,7% em 2014 para 6,8% em 2018. E ninguém falava em fome.

Depois, entre 2018 e 2020, caiu para 5,7%. Já a proporção de pessoas com menos de US$ 3,2 diários medidos por PPC aumentou de 10,3% em 2014 para 13% em 2018. E a palavra “fome” continuou ausente dos jornais. Depois, entre 2018 e 2020, caiu para 10,6%. Em 2021, aumentou, mas com certeza em 2022 terá caído novamente, pela expansão do Auxílio Brasil.

Convido o leitor a fazer o seguinte raciocínio: como é possível que, com um desemprego muito menor e indicadores distributivos que, pelas mensurações do IBGE, mostrariam uma melhora, em 2022 no Brasil se tenha passado de repente a falar de 33 milhões de famintos?

Em parte, isso decorre de entender “fome” como sinônimo de “insegurança alimentar”. Em parte, também, a resposta é clara: “viés”.

Muitos leitores devem ter visto no YouTube um vídeo de Lula, de 2014, onde ele diz que “uma vez eu estava num debate com Jaime Lerner em Paris, falando que no Brasil tinha 25 milhões de crianças de rua e aplaudido calorosamente pelos franceses. Então, quando terminei de falar, o Lerner me puxou e me disse: ‘Lula, é impossível ter 25 milhões de crianças de rua no Brasil, porque se fosse verdade a gente não poderia andar na rua’.

Bolsonaro foi uma aberração e mesmo daqui a 50 anos se falará das 700 mil mortes da pandemia, no contexto associado à postura negacionista absurda do então presidente. Não faz sentido, porém, parte da intelectualidade ter defendido (corretamente) em 2020 a necessidade de seguir critérios científicos no combate à pandemia e, dois ou três anos depois, repetir que 15% da população brasileira vive como se estivéssemos na Somália.

“Economia baseada em evidências” tem que servir para tudo, não apenas para aquilo que é politicamente conveniente. E é cristalino que o número de “33 milhões de famintos” foi exposto intensamente pelo PT em 2022 com objetivos eleitorais.

Bolsonaro se foi e espero que não volte nunca mais ao poder. Não obstante isso, entender a natureza da questão é fundamental para a correta definição das políticas públicas de agora em diante. Por quê? Porque se a população estiver convencida de que 15% dos brasileiros vivem como somalis, faz sentido gastar rios de dinheiro para mitigar essa chaga que afetaria tanta gente. Já se os miseráveis representarem 5% ou 6% da população, as políticas terão que ser mais focalizadas, com uma utilização mais eficientes dos recursos.

É óbvio que os R$ 600 do Auxílio Brasil devem ser mantidos. De qualquer forma, ao contrário do que muitas vezes se tende a pensar, o Brasil gasta uma enormidade de recursos com políticas sociais. Os benefícios rurais (completamente subfinanciados) em 2023 serão de mais de R$ 170 bilhões; o Bolsa Família será de mais de R$ 150 bilhões; o seguro-desemprego, da ordem de R$ 70 bilhões; o Loas, de R$ 85 bilhões; etc.

E vários desses programas estão mal formulados, levando a uma despesa muito maior do que o país poderia ter se tivesse regras mais razoáveis. Por isso, a precisão é chave em se tratando de políticas públicas. Séries históricas, submetidas ao crivo de especialistas, são fundamentais para desenhar bons programas sociais. O resto é torcida.

 

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