O Globo
Uma das causas profundas da crise
democrática é a naturalidade com que se usou o termo realidade alternativa
A leitura de alguns temas complicados me
leva a escrever sobre uma palavra simples do nosso cotidiano: solidão. Rumos
políticos, ecológicos e filosóficos apontam para ela.
No momento em que se discute o controle das
redes sociais, é preciso lembrar que vivemos uma política definida como
pós-verdade. O tsunami de fake news, teorias conspiratórias e desinformação
talvez seja apenas a face visível.
Uma das causas profundas da crise democrática é a naturalidade com que se usou o termo realidade alternativa. Refiro-me a governos, não apenas a indivíduos. Trump, que se sentia no direito de contar o número de pessoas na sua posse de forma diferente de todos os outros observadores.
Colin Powell foi à ONU, em fevereiro de
2003, e apresentou uma série de imagens sobre armas de destruição em massa do
Iraque. Tudo fake news. A Rússia começou com a dezinformatsiya, termo
cunhado pela KGB. Depois introduziu a maskirovka, uma forma de iludir.
Hoje já tem métodos mais sofisticados como o controle reflexivo (upravlenie),
que consiste em disseminar notícias que forcem o adversário a tomar como
racional uma decisão que interessa aos próprios russos.
A internet, com suas bolhas e rapidez de
propagação, acabou consagrando o mundo da pós-verdade. Só que, como diz Hannah
Arendt, precisamos de um mundo comum de fatos (a Terra gira em torno do Sol,
dois mais dois igual a quatro). É nesse mundo que compartilhamos um senso
comum. Alguém diz algo, e o outro sabe o que tem em mente ao usar a palavra. A
perda desse senso comum é um desastre para a democracia.
— Mais do que o estado de crise da
democracia liberal contemporânea, a pós-verdade é o sintoma de um problema mais
profundo que, em termos filosóficos, deveria ser classificado como
hiperindividualização ou subjetivismo radical, algo expresso melhor usando uma
palavra de nosso vocabulário comum: solidão — diz Mirko Alagna no artigo “O
chão tremendo aos nossos pés: verdade, política e solidão”, publicado na revista
Soft Power.
Enquanto a crise democrática avança para a
solidão, a ameaça é grande no campo ambiental. Muitos que reconhecem o
aquecimento global defendem que o avanço tecnológico resolverá todos os
problemas. Como lembrou John Gray, viveríamos numa espécie de bolha marcada por
uma profunda solidão, já em curso com a progressiva extinção das espécies.
O grande filósofo moderno Nietzsche, ao
afirmar que Deus estava morto, acreditava sinceramente que caminhávamos para
uma liberdade maior, livres da mortificação e culpa impostas pela religião. Mas
a liberdade de criar seus próprios padrões morais era vista por ele também como
um nomadismo, uma distância da sociedade, enfim, uma solidão olímpica do homem
superior. Ao combater a metafísica, acabou se abraçando a ela.
O resultado é também uma profunda solidão.
Os caminhos que nos trouxeram aqui foram os
da liberdade individual. Antígona, a personagem grega, simboliza essa luta. A
liberdade é um grande valor ocidental. Mas o próprio autor da tragédia,
Sófocles, acentuava que todas as ações humanas que ignoram limites levam à
destruição.
Camus perguntava na sua leitura de
Nietzsche: liberdade de que ou liberdade para quê? Pode ser uma indagação útil
para a formulação de uma política pós-liberal. Ainda não conheço seus contornos,
mas acredito que regulamentar as redes sociais é um dos seus passos
embrionários.
Na semana passada, a revista Atlantic intitulava um trabalho sobre extremismo político e religioso nos EUA com a expressão “nova anarquia”. É possível que tenhamos chegado perto de uma nova expressão do anarquismo, mas sem o romantismo e a fundamentação do passado. Apenas um mundo de teorias conspiratórias, sem base real compartilhada, um espaço hostil a qualquer relação de confiança.
Fato.
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