O Globo
O desfecho da primeira temporada da série
do arcabouço fiscal, que deixou ontem o Palácio do Planalto para ser
apresentado ao Congresso, traz informações importantes para compreender o rumo
do terceiro mandato de Lula —
tanto sobre como ele manobrará as peças do governo como sobre o novo desenho
geopolítico de Brasília. Acima de tudo, porém, ensina uma lição bem útil sobre
como tratar as guerras internas do governo e os chamados que o presidente da
República lança ao debate público.
A constatação mais óbvia é que Lula
continua fiel ao velho método de deixar os subordinados se digladiarem para
depois arbitrar a disputa, de preferência optando pelo pragmatismo. Foi assim
no primeiro e no segundo mandato, e o resultado do embate fiscal sugere que
será igual no terceiro.
Não quer dizer, claro, que a decisão será sempre a melhor para o país ou que não haverá escorregões. Mas serve de aviso aos navegantes do novo momento político: é bom tomar cuidado antes de aderir incondicionalmente aos “apitos de cachorro” do presidente da República para controlar a narrativa sobre seu próprio governo.
A guerra dos juros altos, por exemplo.
Enquanto os auxiliares debatiam internamente as novas metas fiscais, Lula
comprou uma briga pública feroz com o presidente do Banco Central, Roberto
Campos Neto, a quem já em fevereiro, na primeira alta dos juros sob seu
governo, chamou de “aquele cidadão”, exigindo “explicações ao povo brasileiro”.
Desde então, vários interlocutores do
presidente puderam conferir que a irritação é real, e ele de fato não engole
Campos Neto. Mas quem conhece os mecanismos da política econômica sabe que, se
Lula acreditasse mesmo no que dizia sobre os juros altos e quisesse de fato
forçar a redução dos juros, poderia ter levado o Conselho Monetário Nacional, o
CMN, a aumentar a meta de inflação. Se daria certo ninguém sabe, mas seria uma
manifestação inequívoca de vontade política.
Lula, porém, não fez isso. Soltou os
ministros — e os cachorros — para cima de Campos Neto, ao mesmo tempo que o
presidente do BNDES, Aloizio
Mercadante, reunia no Rio de Janeiro um grupo de economistas heterodoxos
para falar… heterodoxias, criticando os juros altos e relativizando a
necessidade de fazer superávit. Deu verniz à discussão o fato de nela haver um
Nobel, Joseph Stiglitz.
Teria sido útil, porém, observar que o
último discípulo de Stiglitz que comandou uma economia latino-americana —
Martín Guzmán, na Argentina — previu derrubar a inflação, de 53,8% quando
assumiu, em 5 pontos percentuais ao ano, mas deixou o cargo com a taxa em 71%.
Quem achar que é um bom modelo, que compre a passagem só de ida para Buenos
Aires.
Enquanto políticos interessados e acólitos
distraídos se encantavam com o discurso “disruptivo” de Stiglitz e sua
turma, Fernando
Haddad buscava aliados para o arcabouço fiscal entre ministros da área
econômica, além do próprio Campos Neto e do presidente da Câmara, Arthur Lira.
O desenho final ficou mais parecido com o
que os “fiscalistas” pretendiam do que com o que sonhavam os heterodoxos. Em
linhas gerais, o governo se propõe a zerar o déficit público já em 2024,
chegando a 1% de superávit em 2026. Prevê, ainda, que as despesas — todas elas,
mesmo com saúde e educação — só poderão crescer ao limite de 70% do aumento da
receita.
Haddad, portanto, sai vitorioso, o que
nunca teria acontecido se o Lula do mundo real seguisse o próprio apito de
cachorro.
Com a experiência acumulada, Lula sabe que
a sustentabilidade das contas públicas é o que lhe permitirá investir na área
social e em infraestrutura, ao mesmo tempo que cria condições para a queda de
juros. Tanto que disse à equipe econômica fazer questão de chegar ao final do
governo com superávit.
O arcabouço ainda precisa ser destrinchado
para que se saiba se tem consistência ou se carrega truques para sustentar
responsabilidade fiscal de fachada. Para o momento, contudo, basta dizer que
nem Paulo
Guedes, que tocava afinado com a Faria Lima, respeitou o teto de gastos em
sua gestão.
Se contribuir para criar alguma confiança
de que os comandantes da economia têm juízo, já terá cumprido uma função.
Manejar a economia é também gerir expectativas, e Lula está cansado de saber
disso. Ao fazer um discurso raivoso e depois desmenti-lo na prática, o
presidente “está na dele”, como diz o povo.
Quem estiver a fim de segui-lo deve saber
que corre o risco de ficar falando sozinho — ou de ser obrigado a recuar quando
Lula recolher o apito.
Êta apitinho afiado, sá!
ResponderExcluirMalu Gaspar sabe das coisas.
ResponderExcluir