Como já discutido aqui a revolução industrial, o nascimento do capitalismo, a urbanização da sociedade e a democracia liberal produziram a mudança mais radical já ocorrida na história da civilização até então, deixando os vestígios do feudalismo e da monarquia absoluta para trás e impulsionando um inédito avanço das forças produtivas e no processo de inovação tecnológica. Mas as condições de trabalho e vida de amplas camadas da população submetidas à miséria e à exploração desencadearam o movimento sindical e socialista no século XIX. Surge o pensamento de Marx e Engels que pretendia não só oferecer um amplo diagnóstico crítico sobre o funcionamento da sociedade capitalista, como erguer uma teoria econômica, política, moral, filosófica com vistas a orientar a luta dos trabalhadores rumo ao socialismo.
Ao contrário do que imaginaram Marx e
Engels, a revolução proletária não ocorreu nos países de industrialização
avançada e capitalismo maduro, mas na Rússia, atrasada, rural e de capitalismo
incipiente, através do “assalto ao poder” empreendido pelos bolcheviques,
aproveitando as circunstâncias concretas da Primeira Grande Guerra e da revolta
popular contra a fome e o autoritarismo czarista. Os comunistas chegaram ao
poder pela primeira vez sob o lema “paz, pão e liberdade” e consolidaram a
URSS. Do ponto de vista ideológico e teórico, Lenin assumiu o papel de sucessor
de Marx – embora muitos analistas percebam evidentes tensões entre a formulação
de um e de outro – e para o bem ou mal, o movimento comunista internacional
passou a ser orientado pelo marxismo-leninismo.
Lenin morreu cedo e assumiu o poder uma das
figuras mais controversas do mundo moderno: Josef Stalin. Muito distante de uma
idílica e humanista construção social, a URSS passou a ser palco de uma grande
tragédia, a tragédia stalinista. Coletivização forçada no campo com milhões de
mortes; perseguição e assassinato de opositores
entre lideranças sociais, comunistas divergentes, artistas,
intelectuais; produção da farsa dos “Processos de Moscou”, que condenou à morte
diversos e importantes membros do Comitê Central do PCUS; o assassinato de
Trotsky, o maior e mais destacado oponente interno; a extinção de qualquer
vestígio de democracia, com a supressão de toda e qualquer forma de liberdade,
imperando um Estado totalitário e um ambiente de terror conduzido pelo partido
único, suposta encarnação dos interesses operários e populares dentro da lógica
da ditadura do proletariado para alcançar o comunismo. O papel da URSS, do Exército Vermelho e de
Stalin na vitória sobre Hitler na Segunda Grande Guerra rendeu prestígio internacional
ao ditador soviético, jogando uma cortina de fumaça sobre as atrocidades que
aconteciam por trás da “cortina de ferro” e desencadeou a Guerra Fria, ambiente
bipolar de confrontação entre os dois blocos liderados pelos EUA e pela URSS, que
vai predominar até o final da década dos anos de 1980.
Durante todo esse período vários acontecimentos
tiveram impacto sobre o movimento comunista internacional: o vazamento, em 1956,
do relatório secreto de Nikita Kruschev, sucessor de Stalin após sua morte,
denunciando as atrocidades da ditadura stalinista; a crise dos mísseis de Cuba,
ponto extremo da Guerra Fria, em 1962; a invasão da Tchecoslováquia e a
liquidação pelos soviéticos da Primavera de Praga, em 1968; a relação ambígua e
complexa entre a União Soviética e a China, liderada por outro luminar do
comunismo, Mao Tsé-tung; a Guerra do Vietnã, a ascensão de Gorbachev, com a Perestroika
e a Glasnost; a queda do Muro de Berlim; a dissolução da URSS e o colapso do
comunismo.
Ao longo de toda esta trajetória do
movimento comunista internacional, liderado com mão de ferro pelos soviéticos
de 1919 até sua dissolução, se desenvolveu paralelamente uma experiência
original, diferenciada, heterodoxa e criativa a partir da evolução histórica do
Partido Comunista Italiano, o PCI.
Como já vimos, o movimento socialista já
havia se dividido no início do século XX entre socialdemocratas - reformistas e
comprometidos com a democracia – e comunistas – liderados por Lenin, Stalin e o
PCUS. Mas na Itália se desenvolveu uma experiência diferenciado através do PCI,
fundado em 1922, mesmo ano em que Mussolini chega ao poder. O eixo teórico e
ideológico dos italianos, caminho tortuoso, repleto de contradições, se dá a
partir da elaboração progressiva de seus líderes Antonio Gramsci, Palmiro
Togliatti, Enrico Berlinguer e de um fértil conjunto de intelectuais, em busca
do caminho italiano, e mais que isso, europeu, para o socialismo.
Gramsci certamente foi o mais importante teórico
marxista após Lenin. Todo o seu pensamento tem que ser analisado com atenção
redobrada já que sua morte foi precoce, em 1937, antes mesmo da Segunda Grande
Guerra e da consolidação da tragédia stalinista, e a maior parte de sua obra foi
produzida nas prisões fascistas e no hospital (Cartas e Cadernos do Cárcere). Gramsci
foi fundador e secretário-geral do PCI, vindo do Partido Socialista, a que
também pertenceu na juventude, Benito Mussolini.
Mas já em Gramsci estão presentes as
sementes da via italiana para o socialismo e a valorização da democracia como
valor universal e permanente. Suas ideias muitas vezes contraditava a visão
soviética. Desenvolveu a ideia de hegemonia cultural em busca de liderança na
sociedade através de uma “guerra de posições” em todos os campos da vida social,
desencadeando o que chamou de “revolução passiva”, ou seja, um processo
contínuo pelo qual um grupo social chega ao poder sem romper o tecido social,
mas sim adaptando-se a ele e modificando-o gradualmente, em contraposição a alternativa
ao “assalto ao poder” dos bolcheviques. Neste processo teriam papel ativo os
“intelectuais orgânicos”, agentes de educação e transformação social ligados ao
partido. Distinguiu os conceitos de sociedade civil e sociedade política.
Defendeu, como Togliatti, a Frente Única contra o Fascismo, antes dos
soviéticos se renderem às evidências.
Criticava o determinismo economicista do
marxismo-leninismo e atribuía grande valor à chamada superestrutura (ideias,
cultura, instituições, religião, política), não como mero reflexo do modo de
produção e do estágio de desenvolvimento das forças produtivas, mas como
possuidora de uma dinâmica complexa e de autonomia relativa. O partido deveria
enraizar-se na sociedade a partir de um núcleo dirigente que produzisse a
coesão de ideias e ações, de um núcleo médio disciplinado como elemento de
ligação a motivar o universo difuso dos “homens comuns”. A sua independência em
relação aos soviéticos se materializou em gestos como a carta de 1926, quando
já era o dirigente maior do PCI, endereçada aos líderes da Internacional
Comunista, criticando a oposição de esquerda à Stalin na URSS, mas opinando pela
não expulsão de Trotsky e Zinoviev do movimento. Certamente, se estivesse vivo,
ficaria escandalizado e indignado com as condições trágicas que cercaram a morte
dos dois líderes.
Togliatti é herdeiro das sementes lançadas
por Gramsci. Também foi fundador e secretário geral do PCI até a década de 1960.
Tinha rara habilidade política e vivenciou um mar de contradições provocadas pela
complexa realidade, ziguezagueando entre as condições concretas da Itália e as
diretrizes da Internacional Comunista, da qual era alto dirigente. Foi um dos
grandes líderes da luta antifascista e um dos protagonistas, na Itália, da
construção da democracia e do próprio sentido inconcluso de Estado e Nação em
seu país, no pós-guerra. Defendeu a valorização da democracia, uma política
ampla de alianças e o diálogo com as demais forças políticas.
Enrico Berlinguer, secretário geral do PCI
a partir de 1972, foi quem radicalizou o caminho italiano, e de forma ampla,
europeu, para o socialismo, e a ruptura com a linha soviética. O PCI condenou
sem ambiguidades a invasão da Tchecoslováquia e a esmagamento da Primavera de
Praga pelos soviéticos, em 1968, e do Afeganistão, em 1979, em nome dos valores
da liberdade e da soberania e autodeterminação dos povos. O PCI cristalizou o
entendimento de que a democracia é um valor universal e permanente, sem caráter
de classe, nem operária, nem burguesa. Mas um campo livre de luta de ideias e
programas no sentido de processar a “revolução passiva” e avançar a realidade,
melhorando as condições de vida e trabalho do povo. Berlinguer diante do
impasse político onde o PCI e a Democracia Cristã Italiana tinham peso
eleitoral equivalente (os comunistas chegaram a obter 35% dos votos) promoveu o
marcante “compromisso histórico” para garantir a estabilidade institucional no
país. O diálogo entre comunistas e católicos italianos foi abalado pelo
sequestro e assassinato de Aldo Moro, líder maior da Democracia Cristã, por
parte do grupo de extrema-esquerda Brigadas Vermelhas. O PCI não hesitou e
condenou de forma veemente a estratégia dos terroristas e o uso da violência
como arma política.
Diante da impossibilidade de se tornar a
força hegemônica no governo central italiano, o PCI desenvolveu grande tradição
e capacidade governativa em cidades e regiões, acumulando experiência de gestão
com administrações longevas e inovadoras.
Diante da criação da Comunidade Europeia,
embrião da União Europeia e do Euro, o PCI avançou em sua busca de um caminho
europeu, e não só italiano, para o socialismo, reafirmando seu compromisso com
a democracia como valor universal, a liberdade permanentemente renovada e o
reformismo. Neste sentido caminhou para a ampliação de sua construção partidária,
primeiro com a criação do Partito Democrático della Sinistra (PDS), depois fundindo-se
com o Margarida, agrupamento de católicos progressistas, dando origem ao atual
Partido Democrático (PD).
Poderia caber a pergunta: mas sendo um
partido que abandonou a perspectiva revolucionária, defendendo a manutenção da
democracia e propugnando mudanças progressivas por sucessivas reformas, o
eurocomunismo não seria apenas um braço da socialdemocracia? Não. A matriz
histórica do eurocomunismo repousa na história do PCI, no seu diálogo
permanente com a socialdemocracia, principalmente alemã, e nas sementes
teóricas e políticas lançadas por Gramsci, Togliatti e Berlinguer. Influenciou decisivamente
o Partido Comunista Espanhol, o que resultou em forte papel dos comunistas
espanhóis no Pacto de Moncloa e na redemocratização do país. Não conseguiu
sensibilizar os partidos da França e de Portugal, que se mantiveram até o fim subordinados
a Moscou. Impactou em partidos comunistas de menor expressão em outros países
europeus e inclusive no PCB no Brasil, que se converteu em PPS e, recentemente,
no Cidadania. Os líderes e intelectuais do eurocomunismo não renegam o marxismo
em seus conceitos fundamentais e método de análise, embora tenham jogado ao mar
a herança nada edificante do leninismo, do stalinismo e do maoísmo. Em nossos
dias, há uma grande e evidente convergência com social-democratas, católicos
progressistas e sociais-liberais.
Para quem quiser ser introduzido no estudo do eurocomunismo recomento a leitura dos livros “Por um novo reformismo” de Giuseppe Vacca, “Do Stalinismo à Democracia” de Marco Mondaini, “A modernização sem o moderno” de Luiz Werneck Vianna, “Reformismo de Esquerda e Democracia Política” de Luiz Sérgio Henriques, “Itinerários ´para uma Esquerda Democrática” de Alberto Aggio e “Gramsci no seu tempo” organizado por Alberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques e Giuseppe Vacca.
Excelente texto, talvez o melhor desta interessante série! Parabéns ao autor e ao blog que tem divulgado esta série bem informativa!
ResponderExcluirExcelente mesmo,quem sabe,sabe.
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