quinta-feira, 16 de março de 2023

Maria Cristina Fernandes - Uma pitada de poção mágica na regra fiscal

Valor Econômico

É a dívida privada, não a pública, que corre risco e pressiona a política a convergir por redução no juro

No jogo de adivinha sobre as novas regras fiscais que estão por ser apresentadas já se disse quase tudo. Quando a PEC da transição, que impôs o prazo para sua apresentação, foi votada, a única certeza que se tinha é que estas regras teriam que ser aprovadas sob pena de o teto de gastos voltar a vigorar. As ambições anunciadas com a posse do novo governo lhe deram centralidade e a crise de crédito da economia as tornaram um imperativo.

Foi sob a vigência do teto de gastos que o Congresso ampliou a obrigatoriedade da execução e o espaço fiscal de suas emendas. O teto haveria de vigorar apenas para o Executivo, não fossem as sete mudanças constitucionais que o furaram sob a régua e o compasso legislativos. A equação não tem mais como ser reprisada. A crise de crédito, inaugurada pela Americanas, e a zoada amplificada pela quebradeira de bancos estrangeiros também passou a acossar o Legislativo.

Com o acordo entre a União e os Estados em torno da recuperação das receitas dos combustíveis, não é a dívida pública que parece correr risco, mas a privada. Isso não passa desapercebido no Congresso, pressionado a colaborar com a tramitação de uma fórmula fiscal que permita a queda nos juros.

Silenciosamente, os governistas tomaram 14 das 16 comissões do Senado. O balanço é menos favorável na Câmara, mas o naufrágio da federação União Brasil-PP está a demonstrar a força da gravidade do governismo. É este o carimbo da disputa entre Câmara e Senado em torno do rito das medidas provisórias.

Dois meses e meio de governo Luiz Inácio Lula da Silva foram suficientes para demonstrar sua pressa em apresentar resultados e a pressão sobre os gastos públicos dela derivada. Bastaram também para mostrar que seu ministro da Fazenda busca a poção mágica capaz de ampliar, para o mercado, a confiança que lhe deposita o presidente da República. Esta poção mágica é o arcabouço fiscal.

A moderação com a qual Fernando Haddad se investiu no cargo não é apenas o tempero da poção. É a receita - das regras e do mandato do ministro. Sua condição de número 2 do PT o torna alvo preferencial do fogo amigo no partido majoritário do governo. A confiança do mercado pode ancorá-lo na medida em que as tentativas de desestabilizá-lo passem a inflacionar os preços que financiam o Estado. O trauma produzido por Antonio Palocci ensinou que a confiança do mercado só não pode ser maior do que aquela que lhe deposita o presidente da República.

A identidade do mercado com o governo passado fez com que as estripulias fiscais fossem engolidas sem grande alarde. Já há evidências de sobra - acrescidas pela pesquisa Quaest/Genial desta quarta - de que o azedume das mesas de operação com Lula será eterno enquanto dure. Se não gostam do presidente, parecem aceitar o ministro da Fazenda. Isso pode tornar a poção mágica mais palatável para o fim a que se destina: empurrar a taxa de juros para baixo.

Está claro que esta foi a motivação da antecipação das novas regras fiscais. A PEC da transição deu-lhe até 31 de agosto. O governo tinha previsto sua apresentação para abril e depois antecipou para março. A explicação de que é preciso dar tempo ao Congresso para discuti-las cabe no figurino de negociador envergado por Haddad, mas é a pretensão de impactar o próximo Copom que o move.

Nem o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, porém, acredita que as novas regras sejam capazes de produzir uma redução no juro nesta próxima reunião do Comitê de Política Monetária. Prefere apostar que as regras, com limites de gasto atrelados ao desempenho da economia e, por conseguinte, da receita, se pautarão por um ritmo tão paulatino quanto deve ser o da redução na taxa de juros.

No meio do caminho há as ansiedades. A pressa que Lula cobra de seus ministros produz atropelos multiplicados por 37. Autor de uma tese de doutorado na UNB sobre a aprovação das regras fiscais e integrante da secretaria de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Girley Damasceno, trata de desfazer o mito de que as estruturas dos ministérios produzem despesas. O que aumenta, diz, são as propostas, ou que Lula preferiu chamar de “genialidades”.

Se o governo parlamentarista de Michel Temer inchou a participação do Congresso no Orçamento e Jair Bolsonaro a ampliou, Lula não a reduziu. E ainda ampliou o número de Pastas, em busca de uma base no Congresso, que também faz proliferar genialidades como a passagem de avião a R$ 200.

Não poderia haver proposta mais emblemática do momento. Ex-governador de São Paulo, derrotado na disputa pela reeleição e pelo Senado, Marcio França não sepultou suas ambições eleitorais por ter sido colocado num ministério insípido como o de Portos e Aeroportos.

Achou que poderia reviver os tempos em que os aeroportos tinham clima de rodoviária e encontrou empresas aéreas mais do que receptivas à ideia de ocupar a capacidade ociosa das aeronaves com o que França chamou de “nosso público” (estudantes do Fies, aposentados e servidores).

Num governo marcado pela paralisia do Estado, a proatividade dos ministros não deveria espantar. O ministro da Previdência, Carlos Lupi, o primeiro a ser repreendido, nas 48 horas iniciais do governo ao falar em rever a reforma aprovada no governo passado, resolveu voltar à carga. Juntou forças no Conselho Nacional da Previdência para reduzir, numa canetada, o juro do consignado. Num mercado já competitivo, a medida arrisca a racionar e encarecer o crédito, na contramão do Desenrola.

Depois de um governo marcado pela paralisia do Estado, seria esperada tamanha proatividade dos ministros. O difícil será fazer caber tudo isso num garrote fiscal. Consultor legislativo de Orçamento, Orlando Neto é testemunha de todas as regras fiscais propostas nas últimas décadas. Não titubeia em dizer que, seja qual for a proposta da vez, será descumprida. Basta olhar para a pedalada de Paulo Guedes que jogou, para 2026, uma conta de R$ 121 bilhões de precatórios. Se o mercado aprecia limites rígidos, há de aceitar que um rombo desses, por irremovível, deve ser reconhecido nas regras. Esta é a mágica.

 

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