Será dado um fecho a esta exposição.
Premissa primeira. O ingente e singular povo indígena Yanomami tem enfrentado, resistido e sobrevivido a mais de meio século de acossamento civilizacional. Esta é a primeira realidade a ser constatada. Comparado a outros casos passados, sua sobrevivência é um feito notável, porém não de todo surpreendente, pois consequente às ações da sua parte e da parte de outros agentes e fatores complementares. No núcleo dessa dinâmica estão os seguintes fatores positivos:
1. Os Yanomami são um povo culturalmente resiliente às investidas da sociedade envolvente ao ponto de preservar seu espaço sociocultural distinto, apesar das imensas perdas populacionais sofridas. Do ponto de vista territorial, eles detêm hoje um espaço que jamais detiveram no passado. Sua população, apesar das mortes infligidas de fora por doenças e ocasionais ataques belicosos, bem como auto-inflingidas em suas guerras intestinas, está em nível provavelmente regular em comparação ao seu passado, senão, quiçá, crescente.
2. A política indigenista brasileira, em seu dever moral de proteção e assistência, atuou em atropelos, falhando em muitas ocasiões, como de praxe em todos os casos recentes e passados, porém ao final alcançou uma positividade geral de resultados. Evidentemente precisa ser melhorada.
3. Os amigos externos procedentes de várias
nacionalidades conquistados pelos Yanomami, identificados por modos de pensar e
agir um tanto distintos, estando, de um lado, missionários, antropólogos,
jornalistas e militantes do indigenismo laico, incluindo médicos e advogados; e
do outro lado, complementarmente, indigenistas e corpos de saúde estatais, defensores públicos,
militares rondonianos e políticos nacionalistas – têm sido quase sempre
competentes, dedicados e leais.
4. A opinião pública nacional, via largos e
heterogêneos segmentos da classe média brasileira, tem reverberado sentimentos
de empatia e conforto moral aos Yanomami, ao longo de todos esses anos. Suas
expectativas maiores compreendem o ideal da sobrevivência dos Yanomami como
sociedade e cultura, havendo uma predisposição para propor mudanças culturais
consideradas necessárias para torná-los mais perspicazes às realidades
nacionais e mundiais. Prevalece um sentimento de reconhecer alguma forma de
compensação histórica por suas perdas gerais e pelas pressões de várias
naturezas e teores, sem prejuízo de sua inserção no mundo mais amplo. São
ideias vagas, sem deslindamento à vista, porém dignas de nota.
5. A massa geral do povão brasileiro acompanha
vagamente os acontecimentos, torce por um desenlace feliz aos Yanomami, mas sem
maior compromisso com uma solução que não sabe qual seria.
6. O Estado brasileiro ausculta a opinião
pública nacional, especialmente a classe média, e relaciona-a com a opinião
mundial e suas indisfarçáveis pressões, sobretudo em função do discurso
escatológico sobre o papel da Amazônia sobre o meio ambiente do planeta Terra,
quiçá do sistema solar.
7. O mundo, principalmente dos poderes
euro-americanos, mas também por olhares curiosos de outras partes, configurado
em agências privadas de intervenção financeira e ideológica, e em instituições
da ONU, avalia corriqueiramente as condições de viabilidade política e militar
de controle da Amazônia, imaginando todo tipo de cenário geopolítico atual e em
algum futuro próximo.
O conjunto de fatores negativos vêm em
seguida. Alguns deles, na verdade, fazem parte da variedade dos fatores
positivos acima apresentados. A ambiguidade do Estado, do papel exercido por
ONGs e missionários, militares e indigenistas e o panorama internacional também
têm atribuições de ordem negativa.
1. Os garimpeiros em grupos e equipes financiados
por empresários e políticos locais foram os primeiros a marcar presença
destrutiva sobre os Yanomami. Trabalham fora da lei, já que a proposta de
legalização, enviada aliás pelo segundo governo Lula, em 2007, não prosperou
nas instâncias legislativas. Além do estrago que fazem nos leitos e margens dos
rios, destruindo nichos ecológicos de peixes e outros animais ribeirinhos, há o
gravíssimo caso de poluição dos rios e consequentemente dos peixes pelo contato
com o mercúrio usado no processamento de retirada do ouro dos cascalhos e
areias recolhidos.
Para além disso há o contato direto com os
próprios índios, atraídos pelo desejo de obter bens industriais ou aliciados
como pequenos parceiros para melhor garantir o trabalho sem resistência. O
interesse de muitos índios dificulta o controle externo pela Polícia Federal e
funcionários da Funai. Por esse contato passam doenças epidêmicas, alimentos
malfazejos para a dieta tradicional Yanomami e, com alguma frequência, doenças
venéreas e gravidezes indesejadas nas índias. Em diversos casos recentes, os
filhos mestiços são rejeitados pelos Yanomami e abandonados nas cidades para
adoção ou para a morte. A atração do garimpo, os alimentos da cidade que são
fornecidos e a convivência exdrúxula e desrespeitosa, própria de quem se sente
superior, provocam mal estar, indisposição ao trabalho de fazer roças e tocar a
vida normal, com a funesta consequência de provocar desnutrição, inanição e a
morte dos mais frágeis, especialmente crianças. Não há como melhorar essa
situação, se não por sua negação.
Se um dia os Yanomami decidirem por garimpar
suas terras, de modo legalizado, com a ajuda de garimpeiros, há de ser por
outro relacionamento e outras técnicas de produção.
2. Os militares, representando o segmento do Estado
brasileiro encarregado de manter a
segurança das fronteiras, a incolumidade do território nacional e a realidade
física da soberania nacional, são um fator negativo permanente pairando sobre
os Yanomami, já que suas terras estão na fronteira com a Venezuela, do lado da
qual estão outras comunidades e grupos locais do mesmo povo. É certo que o
Brasil mantém boas relações com seus vizinhos lindeiros; porém os princípios de
segurança militar não facultam o relaxamento a esse respeito. De sorte que os militares
têm um papel potencialmente negativo sobre os Yanomami, e só com uma boa
estratégia é que poderiam criar um relacionamento positivo. No cômputo geral
dos anos de relacionamento, avalia-se que tem havido um razoável entendimento
entre militares e Yanomamis. Estes fazem pequenas demandas por bens ou serviços
aos militares e os militares se comportam com superior condescendência, sem
deixar de socorrê-los de modo consistente.
3. Responsável constitucionalmente pela defesa e proteção das terras indígenas e de certo modo pelo bem estar dos índios, o Estado, via órgãos de proteção, assistência, de saúde e educação, bem como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e as Forças Armadas, se apresenta disposto a prestar seus melhores serviços aos Yanomami. Junto a eles vem uma panóplia de auto-oferecidos órgãos e serviços, como segmentos do Judiciário, ministérios da Defesa, Meio Ambiente, Saúde, Direitos Humanos, Promoção da Mulher, Minorias, etc, bem como seus correspondentes estaduais e municipais, todos demonstrando total boa vontade em servir aos Yanomami, como aos demais povos indígenas que estejam com algum tipo de trauma. Entretanto, tanta dedicação raramente produz tantos bons efeitos. Ao contrário, segundo experientes antropólogos, provoca desorientação e desconforto. Esta espécie de prateleira de serviços públicos foi instalada após a redemocratização do país, no fundo como um pleito ou compromisso de compensação. Os índios naturalmente não recusam serviços e bens doados e até exigem-nos quando não os recebem, mas a obsequiosidade transtorna, tal como estamos vendo nesta chamada crise sanitária dos Yanomami.
4. Por interesses díspares, por
idiossincrasias ou por outros motivos, os chamados amigos dos índios também se
excedem em mesuras, empatia e comprometimento que, em geral, raramente duram e
frequentemente provocam conflitos entre si e com outros fatores positivos. É
uma questão de dosagem de condescendência, para não dizer, às vezes, de
incompreensão de seu papel de amigo dos índios. Conflitos entre antropólogos
entre si e entre indigenistas laicos, entre missionários de uma denominação e
de outra, entre outros profissionais, são muito frequentes. Às vezes os
conflitos são explorados pelos índios em seu favor, frequentemente
desorganizando ações combinadas, açulam adversários e provocam consequências
desastrosas. Isto acontece no caso dos Yanomami e nos casos mais dramáticos de
disputas de índios com fazendeiros, madeireiros e garimpeiros.
Frequentemente as disputas entre amigos são abafadas, a bem da preocupação que os une. Em outros momentos, a união levanta entusiasmo acima das possibilidades e termina provocando a reação dos fatores negativos. Às vezes, acontece de uma ONG indigenista exagerar num acontecimento de violência entre garimpeiros e indígenas na expectativa de chamar a atenção e providências devidas, quando na realidade o acontecimento é irreal. Um exemplo externo aos Yanomami vem à baila. Na luta quieta que, por muitos anos, a FUNAI manteve para estabelecer novas terras indígenas para os Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva, do Mato Grosso do Sul, um grupo de antropólogos se uniu a um grupo de missionários e ao Ministério Público para fortalecer a proposta de demarcar largos territórios para estes índios, o que levaria à retirada de uma quantidade imensa de fazendas de soja, algodão e cana de açúcar existentes nessas propostas áreas.
Convenceram um presidente da FUNAI a dar-lhes
respaldo e um dia baixaram em Campo Grande, propalando que estavam com todos os
requisitos formais e razões para demarcar quase um milhão de hectares de
terras. Os fazendeiros se levantaram, criaram suas plataformas de defesa e
ataque e nunca mais se conseguiu demarcar um palmo de terras naquele estado.
Bem, as terras Yanomami já estão garantidas, mas seu problema é outro com
gravidade correspondente. Que não surjam salvadores em confraria para resolver
os problemas dos Yanomami!
Como vimos, os fatores positivos e os fatores
negativos existem como tais, mas também funcionam em modos ambivalentes,
conflitantes interna e externamente, ora de um jeito, ora de outro. A dinâmica
desse relacionamento não pode ser extraída de um programa tipo CHAT-GPT. Os
seres humanos e suas circunstâncias falam mais do que modelos criados em
laboratório. Há que haver sabedoria e capacidade de distinção de problemas,
convoluções potenciais e especialmente os acontecimentos inesperados e circunstanciados.
Quem diria que Collor de Mello ousasse contrariar os militares, políticos, empresários, grandes interesses de
mineradores e garimpeiros - e mandar demarcar a Terra Indígena Yanomami
inteiriça e não em ilhas? Só conhecendo a história e a cultura brasileiras para
vislumbrar essa possibilidade. Rondon o fez quando tratou com Getúlio. Os
antropólogos que estavam lutando pela proteção dos índios no auge da ditadura
militar o fizeram, quando ajudaram os deputados e juristas a elaborar o Estatuto
do Índio, em 1973. A experiência humana diversificada e, no caso, a experiência
indigenista comprovada constituem fatores essenciais para discernir os grandes
problemas indígenas em sua relação com a sociedade brasileira envolvente.
Este é o principal vetor de ação a ser
identificado neste momento da crise dos Yanomami, e, por certo, em qualquer
outra crise. E também na bonança, ou na preservação do que pode continuar a dar
certo.
Passemos agora à parte final, que é o objetivo
dessa série de artigos sobre os Yanomami. Qual seja, apresentar as propostas
para encaminhar a resolução da crise atual e de outras crises que certamente
virão.
1. Os garimpeiros devem ser removidos imediatamente. O governo deve tomar a decisão de legalizar o garimpo ou não. Caso decida por não legalizar, deve tomar medidas fortes de segurança da terra indígena, o que implica persecução de garimpeiros e de negociantes de ouro em Boa Vista, que vivem do ouro retirado de terras indígenas, bem como instalação de pontos de vigilância em diversas partes da terra indígena, inclusive nos limites mais evidentes com a Venezuela. A disputa sobre quem é culpado pela presença de garimpeiros na Terra Yanomami é irreal. A proposta de legalização de mineração em terras indígenas nasceu no segundo governo do presidente Lula, em 2007; por sua vez, foi naquele governo que os postos de vigilância foram fechados, facilitando com isso a entrada de novos garimpeiros. Por sua vez, Bolsonaro considera que já existe legislação suficiente para os garimpeiros se unirem em cooperativas e unirem-se aos índios para garimpar, o que não é suficiente para se colocar a favor de garimpagem tal como vem sendo realizada. De todo modo, dada a complexidade da cadeia de interesses, tradições e conexões financeiras e institucionais envolvida na produção de ouro no Brasil, algum tipo de legalização vai ter de ser efetivado em futuro próximo.
2. A crise sanitária, ainda que em grau menos
acentuada do que as encenações midiáticas dão a entender, deve ser combalida de
imediato. Os meios de preservar a saúde dos Yanomami devem ser ampliados em
relação a enfermarias, presença de médicos e enfermeiras e auxiliares, além de
um treinamento contínuo e renovado dos modos terapêuticos que devem adquirir.
Isto deve incluir um entendimento das noções
de doença e cura dos próprios Yanomami. Por sua vez, dadas as imensas
dificuldades em cuidar pessoalmente dos Yanomami nas condições de isolamento em
aldeias, há que se criar um espírito de corpo sanitarista mais efetivo para
produzir resultados satisfatórios em face desta realidade. Este é um problema
generalizado no indigenismo brasileiro da atualidade.
3. O governo brasileiro deve tomar para si a
responsabilidade das ações nas terras indígenas, incluindo o papel de quaisquer
agências presentes, sejam missões, associações indigenistas, ONGs ou institutos
de pesquisa, além, naturalmente, das bases militares presentes. Esta
responsabilidade será efetivada em forma de conselho com a presença de todas
essas agências e outras necessárias à compreensão dos problemas que existem e
dos que surgirão. A presença de lideranças indígenas será fundamental, incluindo
tanto os que são a favor como os que são contra atividades econômicas fora das
tradições indígenas. Em outras palavras, é chegada a hora de reinventar o indigenismo
brasileiro tomando em conta suas tradições, suas vitórias e derrotas passadas,
mas com nova clareza, especialmente pelo fato de que os povos indígenas sobreviveram
e estão presentes na nação para todo o sempre.
4. Ao assumir esta posição, o governo
brasileiro deve deixar claro ao mundo que sempre esteve pronto para vencer suas
dificuldades e se projetar no mundo com um novo espírito civilizacional.
5. Por fim, a grande questão que assombra antropólogos e afiliados, pensadores pós-modernos e seus seguidores, meio-ambientalistas e escatologistas, cultuadores do multiculturalismo e identitaristas de toda sorte: deveriam os índios, para poder viver melhor e mais confortavelmente, se integrar na nação maior, arriscando, ao final, perder, não sua identidade étnica, mas os milenares hábitos de vida, a simplicidade de viver, os costumes e tradições, alguns dos quais que dificultam a vida e os fazem sofrer, os rituais exóticos e custosos que fortalecem a identidade – para melhor se aproximar da vida civilizada, em todo seu anárquico e desestruturado esplendor, e se preparar para contribuir com o Brasil para ultrapassar as dificuldades que já se apresentam assombrosas, especialmente para um país com sonhos de grandeza mas eternamente devedor desse potencial? Ou, deveriam fazer de tudo para preservar suas tradições e viver o máximo que puderem leais aos ensinamentos de seus antepassados?
Se for possível dar uma resposta realista, me
parece que este é um dilema irreal. Não será por escolha consciente a passagem
que os índios haverão de fazer do seu mais tradicional ao mais hipermoderno.
Pelo que sabemos do Brasil, eles serão atraídos para deixar de ser índios, não
mais pela força, mas pela sedução do mundo contemporâneo.
Suas possibilidades de permanecer índios
surgirão da incapacidade do Brasil de cumprir as promessas que faz com seus
gestos sedutores.
Ao contrário de culturas imigrantes, que logo são deglutidas pela cultura básica brasileira, o Brasil já se abriu para as culturas indígenas porque considera os índios os verdadeiros brasileiros. Gostemos ou não gostemos. Portanto, os índios farão o que lhes for possível fazer. Esta, creio, será a dinâmica mais profunda que moverá a história pelos próximos anos.
*Mércio Pereira Gomes. Antropólogo, professor da UFRJ, ex-presidente da Fundação Nacional do Indio (Funai – 2003-2007), autor de vários livros, em que se destacam Democracia em Convulsão (2020), O Brasil Inevitável: Ética, mestiçagem e borogodó (2019), Para Conhecer e Amar os Indios (2014), Os Indios e o Brasil (1988 e 2012) e Darcy Ribeiro (2000).
Chegamos ao final da série. Agradeço ao autor pelo esforço para nos mostrar sua visão, certamente de alguém com bastante experiência nas questões indígenas. Também agradeço ao blog por divulgar os 6 textos aqui disponíveis. A tentativa de elencar pontos positivos e negativos neste último capítulo pode ter alguma lógica, mas, como o próprio autor reconhece, muitos destes pontos se misturam e se confundem, tornando-os pouco eficientes como forma de exposição das certamente complexas situações que o autor tentou nos mostrar.
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