domingo, 19 de março de 2023

Merval Pereira - De volta para o futuro

O Globo

Inteligência artificial conseguirá reproduzir a realidade?

Nos sentimos envelhecer quando, além da redução das capacidades físicas, presenciamos o início de processos que mudaram a vida do país e do mundo. Nasci em 1949, e de lá para cá usei diversas moedas: Cruzeiro; Cruzeiro Novo; Cruzeiro novamente; Cruzado; Cruzado Novo; Cruzeiro de novo: Cruzeiro real e Real. Passando pelas tablitas e o URV. Todas acompanhadas de sucessivas crises políticas e econômicas.

Também no jornalismo acompanhei mudanças radicais, como a passagem do linotipo de chumbo à era digital. As notícias que transmitíamos através de mensageiros ou telex, hoje podem ser enviadas pelo celular. Celulares, aliás, que foram sendo reduzidos de tamanho, assim como os computadores, enquanto aumentam exponencialmente sua capacidade.

O primeiro celular que vi foi com um correspondente estrangeiro, em Brasília. Era um tijolão, com uma antena enorme. Tenho ainda em casa um Macintosh Classic modelo 1991 que, ao lado de uma Remington do pós-guerra, me lembram do passado enquanto teclo um IPad última geração. A primeira telefoto a cores foi publicada no caderno de Esportes do Globo em 1979, de Recife para o Rio, num jogo do Flamengo. Mas, antes disso, a telefoto em preto e branco já representava uma evolução espantosa.

Em 1972, fui para o nordeste acompanhar as seleções que disputavam a mini Copa do Mundo de futebol em homenagem ao Sesquicentenário da Independência. Tudo muito precário, a telefoto tinha que ser transmitida de um salão do hotel, o único lugar com tomada apropriada. Juntava gente para ver a transmissão, e o fotógrafo Rodolfo Machado, muito brincalhão, apostava como aquela foto no dia seguinte estaria impressa no Globo. Para espanto geral, quando o jornal chegava à tarde, de avião, lá estava a foto.

Ao ler a reportagem excelente de André Miranda no Segundo Caderno de ontem, que mostra como a Inteligência Artificial (IA) pode fazer com que cantores já falecidos possam “ressuscitar” com suas vozes interpretando músicas atuais, me lembrei que em 1991, quando estudava como bolsista na John S. Knight Fellowship em Stanford, conheci no Laboratório de Pesquisa Tecnológica da Universidade um protótipo de computador que tentava decodificar a voz para conseguir o que agora estamos vendo: a possibilidade de Elvis Presley gravar um disco com músicas atuais.

Meses depois, fui a um show de Frank Sinatra em uma pequena arena em Redwood City, cidade vizinha à que morava. Acho que eu e Elza, minha mulher, estávamos entre os mais novos na plateia, composta principalmente de aposentados da região, fãs inesgotáveis de Sinatra. O “old blue eyes” estava com 75 anos bem vividos, mas que deixaram sequelas.

Esquecia a letra das músicas mais famosas, como My Way, ou Strangers in the Night, que, aliás, detestava, tinha um teleprompter para ajudar. Mas a voz continuava quase a mesma, o que já era melhor que a da maioria, ajudada pelo charme com que superava os tropeços, arrancando aplausos da plateia. Morreria sete anos depois.

Desde aquele dia fiquei imaginando que bom seria se salvássemos “the voice” naquele protótipo que vira em Stanford. Nunca mais ouvi falar desse experimento, que agora se concretiza com a Inteligência Artificial (IA). A ideia era, e continua sendo, decodificar a voz de cantores extraordinários no auge da carreira - no caso de Sinatra, talvez dos anos 50 a inicio dos 60, na definição de Ruy Castro, um especialista, para ouvi-los hoje, com músicas à altura. Mas Ruy faz uma ressalva crucial: é preciso ver se a versão da Inteligência Artificial (IA) de Sinatra dá para competir com o Sinatra verdadeiro, que, além da voz, tinha seu charme, sua postura corporal, sua alma, e as melhores orquestras e arranjadores.

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