quarta-feira, 1 de março de 2023

Nicolau da Rocha Cavalcanti - Nunca sem luta, mas não só luta

O Estado de S. Paulo.

Um bom jornal cultiva uma compreensão de mundo que vai além de sua posição ideológica, além de seu lugar na luta política

“Em nenhum momento de sua história, o Estado deixou de estar engajado na luta político-ideológica”, disse, em 1998, Ruy Mesquita, então diretor do jornal, em entrevista à revista O Onze de Agosto, publicação do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. “Desde o princípio, a preocupação de Julio Mesquita (avô de Ruy) era contribuir para o aperfeiçoamento das instituições brasileiras”, disse.

Na entrevista, publicada em outubro de 1998 na edição comemorativa dos 95 anos do XI de Agosto, Ruy Mesquita defendeu que um bom jornal deve, em primeiro lugar, ter “objetividade na informação, tanto quanto seja humanamente possível ser objetivo”, sem deixar que “suas opções ideológicas influam” no noticiário. No entanto, “isso não quer dizer que um jornal deva ser neutro diante dos conflitos políticos e sociais. Imparcial na transmissão das notícias, sim. Neutro nos conflitos políticos, não”.

Essa compreensão de jornalismo levou o Estado a publicar, por exemplo, o editorial Instituições em frangalhos (13/12/1968), no dia do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), criticando severamente o regime militar. “Foi o último editorial que meu pai (Júlio de Mesquita Filho) escreveu”, contou Ruy. “Naquele dia 13 de dezembro, o jornal foi apreendido e, desde então, o espaço do editorial começou a sair em branco. Logo depois, meu pai caiu doente, vindo a morrer em junho de 1969.”

Sobre os tempos da ditadura militar, Ruy Mesquita lembrou: “O Estado, o Jornal da Tarde e o Pasquim foram os únicos órgãos da imprensa que tiveram a presença de censores em suas redações”. Nos outros, o regime não precisou colocar censores, já que suas ordens sobre o que não devia ser publicado eram obedecidas.

Questionado se o mercado – o que fazia sucesso no momento – ditava a ética do Estado, Ruy Mesquita foi enfático: “Em nossos jornais, a ética é nossa, decorrente de nossa formação moral, da tradição e da cultura de minha família”. E admitiu que atuar “em função do que consideramos interesse público, e não em função do interesse do público”, gera críticas.

Mas essa reação adversa parecia não lhe importar. “Se achamos que o governo está certo, pode ser o mais impopular do mundo, ele será defendido por nós. O contrário também vale. Se achamos que o governo enveredou por um caminho errado, pode ser o mais popular do mundo, ele será atacado por nós. O jornal tem de ser fiel a seus princípios”, disse.

Este tripé – imparcialidade na notícia, engajamento nas questões públicas e coerência com os valores institucionais – é o que configura, ao longo do tempo, a identidade e o prestígio dos grandes jornais no mundo inteiro. Não há atalho. Não há campanha de marketing que solucione deficiências institucionais ou jornalísticas. Mas também não há fórmulas secretas complicadas. Basta manter distância das duas tentações, sempre insinuantes, de aplauso fácil: editorializar a notícia ou transigir na opinião.

Na tarefa de diferenciar notícia e opinião – sendo fiel a cada uma delas, com suas regras e perspectivas próprias –, há um detalhe decisivo. Um bom jornal cultiva uma compreensão de mundo que vai além de sua própria posição ideológica, além de seu lugar na luta política. Sua percepção dos assuntos é – deve ser – mais ampla e mais aberta do que os termos da batalha político-ideológica na qual está envolvido. Noutras palavras, o necessário engajamento de um bom jornal não obnubila ou limita sua capacidade de observação e de análise.

A entrevista de Ruy Mesquita à revista O Onze de Agosto oferece um exemplo disso. Questionado sobre a estabilidade da democracia brasileira – completava-se, então, uma década da Constituição de 1988 –, ele disse: “O povo brasileiro tem demonstrado uma comovente e autêntica vocação para o exercício da democracia”. E explicou: “Quando digo isso, estou pensando em San Tiago Dantas, que tem essa frase famosa, segundo a qual o povo brasileiro é muito melhor do que as suas elites”. Tal como agora, a frase era incômoda. Há sempre quem queira atribuir nossos problemas sociais e políticos às camadas mais pobres da população.

“E estou também pensando no MST”, continuou Ruy Mesquita. Aqui está o ponto que gostaria de destacar. “Julgo inaceitável o comportamento de seus líderes mais radicais. Mas tenho de reconhecer que o movimento em si é um fenômeno altamente positivo. (...) Pela primeira vez em nossa história política, aquilo que se pode definir como lumpemproletariado brasileiro se organiza e demonstra uma força de reivindicação que obriga o governo a atendê-lo”, avaliou o então diretor do Estado.

A capacidade de ver além da própria posição políticoideológica requer maturidade e desprendimento. No jornalismo, os fatos têm prioridade. E é isso o que confere a magia própria, o admirável encanto, de um bom jornal. Não é acertar sempre, nem muito menos agradar a todos. É a disposição de oferecer, todos os dias, a máxima objetividade possível nas notícias e a mais contundente defesa de seus princípios na opinião. Mesmo que isso possa custar a vida.

 

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