domingo, 19 de março de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Lula manteve opacidade no Orçamento

O Globo

Mas, com aumento nas emendas de parlamentares, nem isso lhe garante força para ditar agenda no Congresso

Ao acabar com as emendas do relator, identificadas pela sigla RP9 no Orçamento da União, o Supremo Tribunal Federal (STF) acreditou prestar um serviço ao país. No discurso, valorizava a transparência dando um basta ao esquema de compra de votos que sustentou apoio parlamentar ao governo Jair Bolsonaro e à alocação de recursos públicos seguindo critérios paroquiais, não técnicos. Na prática, as brechas continuam abertas. Os critérios adotados no Orçamento de 2023 desenham um quadro não muito diferente, quando não pior, do existente sob Bolsonaro.

Para começar, os recursos à disposição dos congressistas aumentaram. As verbas previstas para 2023 somavam R$ 47 bilhões, ante emendas de R$ 43,1 bilhões em 2020, R$ 37,1 bilhões em 2021 e R$ 26,2 bilhões em 2022 (em valores corrigidos até 15 de março). Nunca o Orçamento lhes destinou tanto dinheiro (há dez anos, as emendas giravam ao redor de R$ 15 bilhões).

Metade (R$ 9,8 bilhões) do valor previsto para as banidas emendas do relator foi incorporada às emendas individuais, cuja execução é obrigatória (RP6). Na dotação inicial, o total das RP6s saltou de R$ 11,7 bilhões para R$ 21,5 bilhões. Cada deputado federal teria neste ano R$ 32,5 milhões à disposição, e cada senador R$ 59,8 milhões — antes ambos tinham R$ 19,7 milhões.

Depois, a maior parte das emendas individuais foi transferida às rubricas correspondentes às bancadas (RP7), também de execução obrigatória, e às comissões do Congresso (RP8). E ainda foram alocados mais R$ 7,7 bilhões na rubrica RP8, antes raramente usada (em 2022, somou só R$ 315 milhões). As RP8s são alocadas segundo a conveniência das lideranças do Congresso, sem deixar claros os responsáveis pela destinação. Esse pedaço do Orçamento, portanto, continua secreto.

A segunda metade do valor das emendas do relator foi incorporada ao orçamento discricionário dos ministérios, sob a rubrica RP2. Por um acordo com o Executivo, a liberação desses recursos continuará dependendo do aval do Congresso. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, não foi criado nenhum mecanismo para saber quem é o deputado ou senador responsável pela destinação. Mais um pedaço do orçamento que continuará secreto.

Na campanha eleitoral, Luiz Inácio Lula da Silva chamou o orçamento secreto de “excrescência” e prometeu restabelecer práticas republicanas no relacionamento com o Legislativo. Eleito, cedeu às demandas para manter a opacidade. Na certa imaginava que isso lhe permitiria liberar verbas quando precisasse de apoio. A falta de transparência é justificada pela necessidade de “governabilidade”. Permite dar a uns — os que votam com o governo —, mas não a outros — os que não votam. Não há objeção razoável a destinar mais recursos a aliados, desde que de modo transparente. Mas os políticos preferem a opacidade, temendo os escândalos associados ao toma lá dá cá.

Neste governo, multiplicaram-se os recursos disponíveis a deputados e senadores sem que precisem fazer esforço. Isso enfraquece o Executivo. Os parlamentares precisam menos de Lula do que precisavam de Bolsonaro com o orçamento secreto. Não é um acaso que a agenda legislativa do governo esteja paralisada e que, como lembrou recentemente o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), Lula não tenha votos para aprovar um simples Projeto de Lei. A “governabilidade” virou meta distante.

Plataformas digitais são coniventes com desinformação da extrema direita

O Globo

Campanha contra a imprensa profissional conta com beneplácito das redes sociais, conclui pesquisa

As plataformas digitais são coniventes com a campanha contra a imprensa orquestrada por grupos de extrema direita nas redes sociais e deveriam ser responsabilizadas por isso. Financiados por políticos de pequena expressão e veiculadores de desinformação, esses grupos contam com um ecossistema estruturado, revela a pesquisa “Ataques à imprensa”, do laboratório dedicado a estudos de internet e redes sociais NetLab, da Escola de Comunicação da UFRJ.

Entre 1º de janeiro de 2021 e 7 de setembro de 2022, o YouTube apresentou 6.900 vídeos com termos relacionados a ataques à imprensa. No total, foram vistos 532 milhões de vezes, receberam 102,5 milhões de curtidas e 8 milhões de comentários. No mesmo período, foram registrados 5,7 milhões de publicações do tipo no Twitter. Os principais disseminadores foram influenciadores e políticos de extrema direita. Eles contaram também com a ação em larga escala de contas automáticas (robôs) para propagar as mensagens.

No Facebook, houve 86.700 publicações, que provocaram 42 milhões de reações e 13 milhões de compartilhamentos. No Instagram, 27.300 publicações com 86 milhões de curtidas. No WhatsApp foram vistas 78 mil mensagens em 230 grupos públicos monitorados. No Telegram, um número maior: 124 mil mensagens em 703 grupos e canais. Entre 9 de outubro de 2020 e 22 de agosto de 2022, foram 4.800 vídeos no Tik Tok, com 280,3 milhões de visualizações. Nessa plataforma, chama a atenção a estratégia de misturar entretenimento e desinformação.

Desqualificar a imprensa profissional é uma estratégia política adotada por esses grupos na tentativa de ser ouvidos e de arrebanhar mais adeptos à realidade alternativa. As narrativas de ataque, segundo o estudo, estão estabelecidas: 1) a “mídia” representa o “establishment” e manipula o “povo”; 2) os grupos de extrema direita defendem a “liberdade de expressão” e revelam a “verdade”; 3) a imprensa profissional é “autoritária” e quer calar a extrema direita; 4) ela defende imoralidades contra a família; 5) ela conspira com os institutos de pesquisa; 6) ela dá muito espaço às mulheres. O principal alvo da campanha, segundo o levantamento, é a TV Globo.

No período analisado, políticos eleitos ou em busca de um mandato foram os responsáveis pela publicação de 45% dos anúncios. Pela estimativa do NetLab, a Meta (dona de Facebook, WhatsApp e Instagram) faturou pelo menos R$ 770 mil com esses anúncios atacando imprensa entre abril de 2018 e abril de 2022. Embora gostem de falar dos mecanismos de moderação, as plataformas digitais privilegiam o engajamento gerado pela desinformação, favorável a seus modelos de negócios. A lógica não é a liberdade de expressão. É o que gera mais caixa, independentemente dos efeitos que isso possa ter no debate público, na imprensa profissional, na busca da verdade e na democracia.

Teleprompter já

Folha de S. Paulo

Fala do presidente tem grande peso na sociedade e deve ser tratada com cuidado

No Império brasileiro, os trabalhos legislativos anuais abriam-se e encerravam-se com a "fala do trono". Não obstante a alusão à oralidade, as peças eram na verdade escritas com denodo, e seus termos, detidamente sopesados, antes da apresentação aos parlamentares.

A República livrou-se do vezo absolutista da velha tradição, mas não da centralidade do discurso para o exercício do poder pelo chefe de Estado. A palavra do presidente tem grande peso na sociedade e deveria receber melhor atenção do círculo governamental.

O improviso, decantado por seguidores seja do atual mandatário, seja do seu antecessor, costuma ser traiçoeiro e custoso. Nesta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) embananou-se com frases um tanto desconexas tratando de preguiça dos indígenas, da miscigenação como um lado bom da escravidão e dos malefícios da obesidade.

Um discurso organizado e preparado antecipadamente com a ajuda de auxiliares familiarizados com os assuntos tocaria nesses temas com eficácia e elegância.

A miscigenação pode conotar um alto grau de liberdade para os indivíduos se relacionarem numa dada sociedade desde que não haja violência nem submissão, como houve durante a escravidão no Brasil. A obesidade é uma doença grave e crescente no país, embora devamos combater os preconceitos contra pessoas obesas.

Numa dessas falações sem bússola, que bajuladores aplaudem como geniais, Lula tachou de golpista o governo de Michel Temer (MDB). Dois minutos de reflexão e um texto escrito à sua frente o teriam poupado do ataque gratuito a aliados e potenciais aliados de seu terceiro mandato.

Nos juros, a oratória destampada do presidente resultou no oposto do que almejava. Queria, como aliás é o desejo geral no país, que as taxas caíssem, mas as suas ameaças à autonomia do Banco Central encareceram o crédito e postergaram a redução esperada da Selic.

A imagem do encantador de serpentes ou a do pícaro que, com a sua prosódia melíflua, convence a plateia das teses mais indigestas não combinam com o exercício da Presidência nas democracias modernas —nem com Lula, haja vista seu desempenho errático nos debates eleitorais recentes.

As responsabilidades políticas, econômicas e sociais implicadas na mensagem do governante exigem que se dê a ela tratamento profissional, protocolar e mediato. O uso mais frequente do teleprompter, o dispositivo eletrônico que mostra ao presidente o que ele de antemão se propôs a falar, faria um grande bem à República.

O gênio da lâmpada

Folha de S. Paulo

Medida sobre o crédito consignado é mais um sinal de busca por soluções mágicas

Partiu do ministro Carlos Lupi, da Previdência, a mais nova "genialidade" do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —usando o termo adotado pelo presidente, não sem ironia, para conter a proliferação de ideias divulgadas sem maior embasamento por seus auxiliares.

O pedetista Lupi, que já fora desautorizado após defender a revogação da reforma da Previdência, agora teve influência decisiva na redução do teto de juros aplicável ao crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS.

O corte da taxa —de 2,14% para 1,70% ao mês— foi aprovado por 12 votos a 3 no Conselho Nacional da Previdência Social. Não parece ter havido coordenação com o ministério da Fazenda, que no máximo teria alertado contra a mudança.

O problema é que o limite pode inviabilizar parte das operações por não cobrir os custos, que somam a taxa de captação dos bancos, despesas administrativas e de distribuição, inadimplência e os encargos tributários.

Ao menos 27 instituições operam com consignado. Mas várias são de pequeno e médio porte, com custos de captação acima dos de bancos de primeira linha, e já operavam com baixa rentabilidade.

Mesmo os maiores bancos terão de rever procedimentos. A suspensão de novas concessões de crédito ocorreu até no Banco do Brasil e na Caixa, o que demonstra a imprudência da decisão. Regras do Banco Central impedem a concessão de crédito na modalidade se houver rentabilidade negativa.

A consequência deve ser a limitação da oferta, que vinha rodando entre R$ 5 bilhões e 7 bilhões ao mês. Cerca de 14,5 milhões de aposentados tomam empréstimo consignado. Agora, qualquer dinheiro novo poderá ficar concentrado em tomadores com menor risco, pelo menos enquanto não houver redução da taxa básica de juros, hoje em 13,75% anuais.

O freio dos bancos públicos gerou revolta em parte do governo e no PT. Lupi, por sua vez, disse não ter medo de cara feia. Talvez o ministro se sensibilize com a contrariedade dos aposentados —os de menor renda e idade mais avançada serão os mais prejudicados.

A ansiedade por medidas mágicas para acelerar o crescimento se espalha pelo governo, causando disputas internas e emitindo sinais confusos para a sociedade.

As genialidades criticadas por Lula só proliferam, porém, porque é ele quem até aqui demonstra preferir caminhos fáceis a escolhas prudentes para construir resultados sustentáveis a médio prazo.

Os grilhões da economia brasileira

O Estado de S. Paulo.

Na vanguarda do atraso em tributação, gastos públicos, governança ou segurança jurídica, País devora oportunidades de crescimento econômico e desenvolvimento humano

A liberdade econômica é, antes de tudo, uma questão de princípio: a afirmação do direito de cada indivíduo de decidir por si mesmo como orientar sua vida. Na constelação de valores liberais, ela é retroalimentada por um compromisso universal com a dignidade humana, com a distribuição do poder e com o progresso social por meio de debates e reformas.

A eficácia desse princípio é mensurável. Primeiro, pela correlação entre liberdade econômica e renda per capita. Países com níveis maiores de liberdade econômica têm níveis menores de pobreza. Mas os benefícios sociais vão além das dimensões materialistas e monetárias. Estes mesmos países gozam de índices melhores de desenvolvimento humano, como expectativa de vida, educação, saúde ou segurança. A correlação entre liberdade econômica e inovação também confere mais capacidade de vencer desafios ambientais, notadamente o da energia limpa. Finalmente, há uma inegável relação entre liberdade econômica e governança democrática.

Isso não autoriza a complacência ou a idealização. Mesmo nos países mais alinhados à economia de mercado há grandes desafios para reduzir desigualdades ou a concentração de poder político e econômico e prover oportunidades de crescimento para todos. Mas, apesar das imperfeições, essas nações foram mais capazes de criar aparatos de proteção e inclusão dos desvalidos – o Estado de Bem-Estar Social – do que sistemas, em teoria, radicalmente redistributivos, como o fascismo ou o socialismo. Parafraseando Winston Churchill, o livre mercado é o pior sistema econômico – exceto por todos os outros que já foram tentados.

Se o Brasil é proverbialmente o “país do futuro” – que nunca chega –, é em parte porque reluta em se comprometer com essa verdade. A Constituição assegura “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Ou seja, em tese, a liberdade é a regra; e a interferência estatal, a exceção. Na prática, é bem diferente. Segundo o Índice de Liberdade Econômica de 2023 da Heritage Foundation, por exemplo, o Brasil está na 127.ª posição entre 174 países e na 26.ª entre os 32 países da América Latina.

O Índice classifica as economias em quatro categorias – livres, moderadamente livres, majoritariamente não livres e reprimidas – conforme quatro grandes critérios: Estado de Direito (direitos de propriedade, eficácia judicial e integridade governamental); tamanho do Estado (encargos tributários, gastos governamentais e saúde fiscal); eficiência regulatória (liberdades de negócios, trabalhista e monetária); e abertura de mercado (liberdades de comércio, investimento e finanças). Na maioria desses indicadores, o Brasil está abaixo da média mundial, patinando no pelotão das economias majoritariamente não livres.

Quando o PT subiu ao poder em 2003, o País estava na 72.ª posição; quando o deixou, tinha caído para a 140.ª. O declínio foi ligeiramente revertido desde a gestão de Michel Temer. Medidas recentes, como a reforma trabalhista e a da Previdência, os marcos do gás e do saneamento ou a autonomia do Banco Central, foram positivas. A Lei da Liberdade Econômica também, mas em alguns pontos ela é cosmética; em outros, insuficiente ou até distorciva. Mais robusto é o anteprojeto de lei elaborado por um grupo de juristas sob a coordenação do professor Carlos Ari Sundfeld (FGV), que contempla um marco jurídico amplo baseado nas melhores práticas internacionais, tanto para proteger a liberdade econômica como para assegurar critérios de racionalidade na regulação.

As perspectivas, infelizmente, são ruins. Como se viu, o lulopetismo é parte maior do problema, sendo responsável por retrocessos expressivos em áreas como encargos tributários, gastos públicos e liberdade para fazer negócios. Mas Brasília é maior que o Palácio do Planalto e o Brasil é maior que Brasília. Se a sociedade civil for capaz de se organizar, de baixo para cima, de fora para dentro, pode impedir retrocessos e lançar os pilares para futuros avanços.

A Argentina beira o abismo – de novo

O Estado de S. Paulo.

A realidade é dura, mas é a realidade. Se não a aceitar e parar de congelar preços e imprimir pesos para cobrir gastos, o país seguirá no labirinto de seu pesadelo inflacionário

“Se você sair da Argentina e voltar em 20 dias, tudo terá mudado; se voltar em 20 anos, nada terá mudado.” As estatísticas oficiais confirmam o chiste, só que não são engraçadas: a inflação ultrapassou 100%, uma das maiores do mundo e a mais alta e mais acelerada desde a hiperinflação dos anos 80. “A fonte principal da inflação são os gastos deficitários do governo, financiados por empréstimos do banco central”, alertou o FMI – em 1958.

Mais estonteante que a capacidade do país de reeditar erros é a de desperdiçar seu potencial. No início do século 20, as exportações de carne e grãos lhe conferiam uma das maiores rendas per capita do mundo. Hoje, ainda goza de uma portentosa produção agrícola, está sentado sobre imensas reservas de xisto e lítio e tem um setor de tecnologia responsável pelo mais bem-sucedido e-commerce da América Latina. Mas o mesmo pensamento mágico que dilapidou a belle époque argentina sufoca as possibilidades de revivê-la. Há décadas a confiança excessiva nas exportações de commodities, aliada a gastos públicos insustentáveis, dispara ciclos de euforia e depressão que perpetuam a instabilidade política e o declínio econômico.

Para evitar colapsos nas turbulências, sucessivos governos deram calote em seus credores. Nos anos 90, Carlos Menem adotou alguma ortodoxia econômica e o capital voltou a circular, mas logo foi drenado por políticas fiscais frouxas, levando a uma nova debacle em 2001. O resgate veio pelo superciclo das commodities. Os governos peronistas voltaram a distribuir copiosos auxílios e subsídios. Findo o ciclo, a barca furada voltou a fazer água. Novos calotes se seguiram e, de novo, o país perdeu acesso aos créditos internacionais.

Para restaurá-lo, Mauricio Macri logrou, em 2018, um empréstimo de US$ 57 bilhões do FMI e fez reformas de austeridade. Mas poucas e tardias. Os sinais de estabilização evaporaram quando um novo governo peronista, de Alberto Fernández, retomou subsídios, congelamentos de preços, muita impressão de dinheiro para custear gastos do governo e mais calotes.

Para piorar, o FMI, que, num tango excruciantemente infindável, sempre foi o renitente cobrador de austeridade e racionalidade de um renitente devedor perdulário, dá sinais de fadiga, adotando a indulgência de certos consortes de alcoólatras. Nas últimas negociações, ele fez pouco para disciplinar o vício argentino da “inconsistência entre um ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de acordo social sobre como financiá-lo”, que, segundo o exdiretor do FMI Alejandro Werner, “levou à instabilidade macroeconômica, à variedade de controles que minam o setor privado e à falta de previsibilidade da política regulatória”. Juntos, “esses elementos formam um status quo econômico letal”. O inimigo público do peronismo tornou-se, segundo ironizou o jornal La Nación, a “Thelma no Ford Thunderbird que Louise acelera até o abismo”, referindo-se ao filme Thelma & Louise.

Não há saída indolor. Para despertar do transe, a Argentina precisa de uma terapia de choque. Menos dolorosa, mas menos eficaz, seria a via gradualista. Mas ambas, sobretudo a primeira, exigem clareza, resolução e capital político. O governo não tem nada disso e, em ano eleitoral, não quer forçar ingestões amargas, ainda que de um remédio vital. “É como o dilema do bonde”, disse o ex-economista-chefe do banco central Eduardo Levy. “Ninguém quer apertar o botão vermelho.” Espera-se que o eleitorado aperte o botão de ejeção do peronismo, substituindo-o por alguém com coragem para fazer o que precisa ser feito. Até lá, os desgraçados nos trilhos do bonde aumentarão.

O drama argentino é uma advertência às nações que arriscam entregar a populistas um Estado sem controles fiscais. No Brasil, o último presidente depredou o teto de gastos que o atual considera uma “estupidez”. Seu ministro da Economia promete um novo arcabouço, mas, enquanto isso, o céu é o limite e o Brasil navega águas tormentosas sem uma âncora. Se ele está longe do abismo beirado pela Argentina, não significa que não siga na mesma direção.

Juízes rebeldes

O Estado de S. Paulo.

Insurgência contra resolução do CNJ que determinou a volta ao trabalho presencial não pode passar impune

Desde o dia 16 de fevereiro, todos os magistrados e demais servidores do Poder Judiciário deveriam ter retornado ao trabalho presencial por força de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicada em novembro do ano passado. Foram três meses de preparação para a volta à realidade pré-pandemia, à qual, há ainda mais tempo, já voltaram os servidores dos Poderes Executivo e Legislativo.

Segundo o corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, a esmagadora maioria dos juízes (96%) e dos serventuários (83%) cumpriu a determinação do CNJ e voltou às suas comarcas na data estabelecida. Porém, um pequeno e barulhento grupo de juízes insurgentes ameaça não só a autoridade do CNJ, órgão responsável por zelar pela eficiência na prestação dos serviços judiciais no País, como, principalmente, a própria imagem da Justiça perante a sociedade.

O grupo rebelde, autodenominado “Respeito à Magistratura”, é composto por cerca de 800 juízes estaduais, federais e trabalhistas. Eles elaboraram um “manifesto” a fim de “orientar” seus colegas a descumprir o que consideram ser “atos administrativos manifestamente ilegais que violem a Lei Orgânica da Magistratura”. Pasme o leitor, é como tratam a resolução do CNJ.

Ora, é evidente que nada há de ilegal nessa resolução. Ao determinar a volta ao trabalho presencial, o CNJ apenas restabeleceu uma rotina à qual todos os magistrados e servidores estavam habituados até pouco tempo atrás, suspensa apenas em razão da pandemia.

Por trás dessa alegação está a defesa de interesses particulares e privilégios aos quais se aferrou essa minoria de juízes e servidores. Alguns tiveram o desplante de alegar que, em decorrência do trabalho remoto, fixaram residência no exterior e, portanto, estariam fisicamente impedidos de retornar aos postos de trabalho.

Dado o evidente abrandamento da pandemia, graças à vacinação, não há mais qualquer razão para que a prestação jurisdicional continue sendo realizada a distância. Nos momentos mais dramáticos da emergência sanitária, por óbvio, era melhor ter o socorro de juízes protegidos do vírus em suas casas do que não ter socorro algum. Mas essa crise já foi superada, de modo que o essencial contato presencial dos magistrados com as partes e seus respectivos advogados deve voltar a ser rotina.

Como muito bem disse ao Estadão o presidente do Tribunal de Justiça de Goiás, desembargador Carlos França, “o magistrado tem de estar na comarca, conhecer sua unidade judiciária, conviver com a sociedade local, estar disponível para falar com advogados e para audiências”.

De fato, é “intolerável”, como classificou o ministro Salomão, que juízes se insurjam a um só tempo contra a Constituição, a Lei Orgânica da Magistratura e uma resolução do CNJ bastante razoável apenas por suas idiossincrasias. Se estão em desacordo com as normas que regulamentam a profissão, que escolham outra. E, enquanto isso, que seus atos de flagrante indisciplina, em prejuízo do interesse público, sejam devidamente punidos.

 

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