terça-feira, 7 de março de 2023

Paulo Hartung - Encontros e desencontros do governo

O Estado de S. Paulo

Dia a dia se cava um abismo diante de um governo eivado por contradições. De um lado, iniciativas reparadoras e urgentes; de outro, impressionante volta a um passado nocivo

Os primeiros passos do novo governo federal desenham jornada marcada por acertos notáveis, mas também atravessada por descaminhos inacreditáveis, evidenciando, a rigor, preocupante falta de rumo em direção à gigantesca tarefa de governar o País para todos. Observa-se cenário de desencontros, fragmentações e impasses que atravancam a ação, o que implica prejuízos à retomada da normalidade, um desafio num país que se mostrou profundamente dividido desde as eleições.

Naturalmente, é um alívio testemunhar decisões como a busca de inspiração e fundamentos na bem-sucedida experiência da educação básica do Ceará, com vistas à melhoria da aprendizagem dos nossos jovens. Louvável, também, a prioridade de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), necessidade cabalmente demonstrada durante a pior fase da pandemia da covid-19, seja por sua relevância na travessia, seja pelos problemas gerenciais registrados. Digno de nota, o Brasil ter voltado à cena global como interlocutor e player decisivo em questões como integração regional, comércio internacional e convulsão climática. Vale lembrar o protagonismo na COP27, no Egito, antes mesmo da posse.

De outra sorte, dia a dia vem sendo cavado verdadeiro abismo diante de um governo eivado por contradições, como se estivesse perdido em seu próprio labirinto. De um lado, iniciativas reparadoras e tão urgentes; de outro, impressionante volta a um passado repetidamente nocivo à vida brasileira. É decepcionante que estejamos assistindo novamente à subsunção de empresas públicas a arranjos que menosprezam o profissionalismo. Como não se espantar diante de comportamentos reticentes quanto a uma normatização fiscal efetiva que ancore as expectativas econômicas no País? Surpreendentemente, a autonomia do Banco Central entra na mira de fogo, como se fosse mera letra legal, sem consequências desastrosas. Vale registrar que essas são questões já assimiladas como fundamentos de governanças modernas mundo afora, deixando de constar de receituários que diferenciariam esquerda e direita.

Importante salientar que ruídos e ações desarticulados em nada contribuem para embasar o esforço nacional no enfrentamento das turbulências do atual cenário internacional, marcado pelas disputas entre EUA e China, guerra na Ucrânia, emergência climática, entre outras. Um já perceptível descompasso entre discurso e prática também pode levar ao desperdício de oportunidades preciosas que se colocam diante do Brasil, como a descarbonização da economia, o imperativo da transição energética ou a expansão da demanda por alimentos, além das possibilidades nos terrenos da infraestrutura e da digitalização.

O País precisa reafirmar seu rumo em direção à modernização de suas instituições, o que significa respeito a boas agências regulatórias, a adequados marcos legais, assim como compromisso firme com a segurança jurídica. Além de compromisso com o equilíbrio fiscal e progresso nas inadiáveis reformas estruturantes, alcançando o sistema tributário e as máquinas governativas. Caso contrário, continuaremos prisioneiros de taxas de crescimento medíocres, além de perdermos novas oportunidades para um desenvolvimento socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável.

Nesse sentido, a preliminar mais desafiadora é o próprio governo acertar o passo no rumo certo, evitando a armadilha de caminhos que, no passado, já nos levaram a fracassos retumbantes. Governos podem muito, mas não podem tudo, nem fazer e acontecer, sem medir consequências. Os erros cobram o seu preço. E quem paga a maior parcela da conta são os pobres, com inflação, desemprego e recessão econômica. Ademais, o que fortalece a democracia são os êxitos que alcança e preserva. Nesse sentido, uma governança errática só nos imporia ainda mais desafios. Alerto que o Brasil é parte do ambiente planetário, que vem colecionando exemplos de hostilidades e violentos ataques aos fundamentos democráticos.

Sem dúvida, cabe à liderança arbitrar as diferenças e reger a orquestra alçada ao poder, assim impedindo cenário de disputas internas que virem um “todos contra todos”, o que torna o time disfuncional e produz momentos de constrangimento público que não favorecem a superação das emergências postas. De fato, o líder deve abrir espaço saudável à diversidade de concepções de mundo e às inovações, tendo como princípios o fortalecimento do conjunto e a consecução das finalidades, em vez de fragmentação. Abandonando o biombo de uma diversidade de fachada, deve recusar o lugar de maestro das desavenças, que pode até lhe dar poder fugaz, mas que certamente engessará o conjunto em discórdias autofágicas.

Enfim, num país que mudou muito nas últimas décadas e que não para de se transformar, tudo o que menos precisamos é de um governo que aposta em semear e administrar divergências interna corporis como forma de gestão e exercício de poder, mantendo-se atrapalhado diante de sua inadiável agenda modernizante. O Brasil sabe aonde deseja chegar. Esse desencontro de perspectivas sinaliza erros na largada e, ao persistir, indica perspectivas pouco alvissareiros, logo adiante. Minha torcida é para que o governo escolha como estratégia a coesão político-administrativa que passa pela união da boa política com a boa técnica.

 

2 comentários:

  1. Anônimo7/3/23 08:36

    Perfeito. Lucidez analítica e propositiva.

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  2. É por aí! Infelizmente, tudo indica que o atual presidente vai dar continuidade às péssimas práticas de alimentar conflitos para projetar o seu poder e usar abusivamente cargos e recursos públicos para comprar apoios políticos. Temos pago um custo imenso por esse tipo de política mas parece que não aprendemos nada...

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