sábado, 22 de abril de 2023

Carlos Góes - Lula e o xadrez geoeconômico

O Globo

Na terceira vez ocupando a presidência, petista enfrenta um mundo com interesses econômicos subdeterminados por contextos políticos

A viagem do Presidente Lula à China causou muitas reações. A movimentação de Lula, se traz oportunidades, traz também riscos, porque, na última década, o mundo tem se caracterizado pelo fenômeno da fragmentação geoeconômica.

Mas o que é este fenômeno?

No mundo que emergiu da Guerra Fria, as palavras de ordem eram livre comércio e mercados abertos. Mesmo a China e a Rússia foram integradas aos mercados internacionais e reconhecidas como economias de mercado.

A História parecia ter chegado ao fim, com a democracia de mercado tendo prevalecido como modelo hegemônico, como conjecturou o cientista político Francis Fukuyama.

Contudo, esse conto de fadas do liberalismo global parece ter chegado ao fim. Nacionalistas anticomércio — como Donald Trump, nos Estados Unidos — chegaram ao poder pelo voto. Com isso, o consenso quanto à integração do Ocidente aos mercados globais passou a ser desafiado.

Mais recentemente, a invasão da Ucrânia pela Rússia exacerbou essa questão, forçando uma série de países a tomarem decisões econômicas que normalmente não seriam tomadas pelo viés da diplomacia. Por exemplo, alguns países europeus cortaram relações comerciais e financeiras com a Rússia. Os interesses geopolíticos se sobrepuseram aos interesses econômicos e tornaram os ganhos da cooperação impossíveis, mesmo que isso leve a algumas perdas.

Embora esse seja um caso extremo, ele ilustra bem o que é a fragmentação geoeconômica: nesta última década, em diversos momentos, os interesses econômicos passaram a estar subdeterminados pelos interesses geopolíticos.

Há algumas décadas, falávamos de offshoring, com empresas ocidentais fazendo investimentos na Ásia para aproveitar os baixos custos de produção por lá e exportar para o resto do mundo. Hoje, fala-se de reshoring — isto é, trazer essas fábricas de volta para os países de origem; ou de “friendshoring” — ou seja, fazer esses investimentos não mais na China ou na Ásia, mas em aliados estratégicos, como o México, o Leste Europeu, ou países do Caribe.

Esses movimentos não são espontâneos. O governo americano tem se movimentado para incentivar o retorno de fábricas para o país. Segundo dados de um estudo recente do FMI, o investimento estrangeiro direto na China caiu em 60% desde 2015, enquanto nos EUA e na Europa aumentou em 40%.

Este é um dos riscos da movimentação de Lula. Num mundo em que as decisões econômicas operam num arcabouço predefinido por interesses estratégicos, se o Brasil for percebido como parte de um dos grupos, isso pode definir o futuro econômico do país.

Mas qual é a melhor estratégia?

Um trabalho recente que escrevi com o economista Eddy Bekkers, publicado ano passado como um documento de pesquisa da Organização Mundial do Comércio, ajuda a responder a essa questão. Nele, nós usamos um modelo matemático para simular um cenário de “nova guerra fria”, em que o mundo se divide entre dois blocos: um bloco ocidental e outro oriental. Esse é um cenário radical, em que o nível de comércio entre os blocos se reduz muito, mas ilustra perdas potenciais.

Neste cenário, duas coisas chamam atenção.

Primeiro, ficar preso no bloco dos países menos produtivos é muito ruim — como na Guerra Fria real, as perdas dinâmicas de longo prazo podem ser grandes. Para os países mais pobres, na nossa simulação, as perdas acumuladas chegam a ser de 12% do PIB em 20 anos. Nós não simulamos o Brasil separadamente, mas as perdas acumuladas para a América Latina, quando incluída no bloco oriental, são de 5% do PIB em 20 anos.

Segundo, a melhor estratégia é sempre comercializar com todo mundo. Por isso, em tese, a estratégia de buscar uma solução neutra, em que você seja aceito por todas as partes, é ideal

Se Lula quer ou não reviver a Política Externa Independente ou dar início a um novo Movimento dos Não Alinhados, há outros colunistas do GLOBO mais competentes que eu para analisar. Mas o fato é que, em um mundo caracterizado cada vez mais pela geofragmentação econômica, o risco de ser percebido como um desafeto pode custar caro.

Pode significar que você está fora de uma rodada de investimentos de “friendshoring”. Ou mesmo o cancelamento de acordos futuros, mesmo aqueles já bem encaminhados como o acordo comercial Mercosul-União Europeia ou o acordo de adesão do Brasil à OCDE. Nesse panorama, é preciso dosar a estratégia para evitar riscos excessivos.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário