segunda-feira, 17 de abril de 2023

Demétrio Magnoli - As armas da paz

O Globo

O sucesso ou o fracasso das reformas francesas determinará a estabilidade da Zona do Euro

Exatos 20 anos atrás, em 16 de abril de 2003, a União Europeia (UE) firmava o tratado de acesso de dez países do antigo bloco soviético. Nas duas décadas seguintes, a UE enfrentou crises profundas, de natureza econômica e política. Mas a promessa original do projeto europeu — a paz pela integração, no lugar da integração pela guerra — não perdeu seu poder de atração.

A crise do euro, entre 2010 e 2012, abalou os pilares financeiros do bloco e acabou provocando novas iniciativas de integração fiscal, concluídas sob o impacto da pandemia de Covid-19. A ruptura britânica, deflagrada pelo plebiscito do Brexit, em 2016, que parecia anunciar a desagregação da UE, terminou comprovando a coesão do bloco.

A força da UE revela-se de formas paradoxais. O voto dos britânicos decidiu o Brexit; hoje, clara maioria deles expressa o desejo de reverter a cisão. Partidos da extrema direita cresceram na França e na Itália erguendo a bandeira da saída do bloco; hoje, moderaram seus discursos e já não contestam a participação na UE. Mais de 70 anos depois do Tratado de Paris, de 1951, que estabeleceu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), com seis nações, a “Europa unida” tem 27 integrantes — e contam-se oito países, inclusive a Ucrânia, na fila de candidatos oficiais ao acesso.

O projeto de integração surgiu, em parte, como reflexo da redução de poder geopolítico da Europa, acelerada pelas duas guerras mundiais e pela decomposição dos impérios coloniais. Do Pós-Guerra para cá, prosseguiu o declínio histórico de uma Europa espremida pela rivalidade global entre os EUA e a China.

A demografia e a economia conspiram contra os europeus. Entretanto, pelo menos no terreno crucial da transição energética, a UE ocupa lugar de liderança mundial. O “Green Deal” europeu fixou a meta de zero emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050 e de redução em 55% das emissões até 2030. O plano de recuperação econômico pós-Covid alocou € 600 bilhões para a transição a fontes energéticas limpas. A substituição de combustíveis fósseis prossegue, mesmo sob o impacto do choque de oferta imposto pela guerra na Ucrânia.

A Ceca nasceu sob o impulso da parceria entre Alemanha e França. Os dois países constituíram o motor do projeto europeu e de seu passo mais ambicioso, a união monetária. Mas, para funcionar, ele depende da manutenção de uma relativa paridade econômica entre os dois parceiros. Desse imperativo surgiram as reformas econômicas de Emmanuel Macron. No regime de moeda única, sem a alternativa de desvalorizar seu câmbio, a França precisa elevar sua taxa de produtividade geral para manter a competitividade econômica.

O sucesso ou o fracasso das reformas francesas determinará a estabilidade da Zona do Euro — e, por extensão, da própria UE. A crise política detonada pela elevação da idade de aposentadoria na França ameaça conduzir a Reunião Nacional, partido da direita nacionalista de Marine Le Pen, à vitória nas eleições de 2024. Nessa hipótese, o motor franco-alemão ficaria travado.

O Tratado de Maastricht, de 1992, inaugurou a política externa e de segurança da UE. Contudo a ideia de uma estrutura de defesa comum permaneceu na esfera dos sonhos franceses. A Alemanha priorizou a proteção conferida pela Otan (na prática, pelos Estados Unidos) e, desde o fim da Guerra Fria, aprofundou a cooperação econômica com a Rússia, especialmente no campo energético. A guerra na Ucrânia embaralhou todas as cartas.

Três dias depois da invasão russa, o chanceler Olaf Scholz anunciou um Zeitenwende, “ponto de reversão”, da política externa alemã. O país comprometia-se com o piso de 2% de gastos militares previsto pela Otan e engajava-se, ainda que com oscilações, no auxílio bélico à Ucrânia. A guerra imperial russa escancarou o despreparo militar europeu. A hipótese de retorno de um presidente isolacionista à Casa Branca evidenciou os perigos gerados pela dependência do bloco em relação à segurança propiciada pelos Estados Unidos. Os europeus almejavam a paz por meio da economia. Putin ensinou-lhes que não terão a paz sem as armas.

 

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