segunda-feira, 3 de abril de 2023

Demétrio Magnoli - Esculpindo o inimigo

O Globo

Lula e os seus engajam-se na operação populista de eleger o 'traidor da pátria' destinado a servir como álibi e foco de mobilização da base fiel

 ‘Arrogância do BC de Guedes e Bolsonaro não tem limites: querem desacelerar ainda mais a economia e manter juros na estratosfera. O Brasil que se dane, segundo o Copom.’ O tuíte de Gleisi Hoffmann, síntese da campanha do governo e do PT contra o Banco Central, não resiste ao gráfico da evolução histórica da Selic.

Bolsonaro queria incinerar os livros de epidemiologia. Lula declarou, há pouco, que “os livros de economia estão superados”. A crença rondava a mente de Dilma Rousseff quando ela se sentou na cadeira presidencial. A “nova matriz macroeconômica” pilotada por Guido Mantega e pelo obediente BC de Alexandre Tombini baseava-se na ideia primitiva de que o crescimento flui da explosão do gasto e do crédito públicos, sob política monetária expansiva.

O experimento monetário heterodoxo começou em julho de 2011. Dali a outubro de 2012, numa conjuntura de economia aquecida, a Selic desabou de 12,5% para 7,25%. Deu ruim. A inflação crepitou, e o BC foi obrigado a engatar marcha a ré, alçando os juros até a estratosfera de 14,25% em julho de 2015. Contudo ninguém no PT acusou a presidente de conluio com a maligna Faria Lima.

Feito o impeachment, Temer colocou no BC Ilan Goldfajn, descrito no discurso petista como o próprio Belzebu: um “neoliberal” a serviço dos banqueiros. Sob o satânico Goldfajn, porém, a Selic sofreu contínua redução, até pousar em 6,5%, em março de 2018. Era a resposta indicada nos tais livros de economia à profunda recessão gerada pelo negacionismo econômico petista.

Bolsonaro indicou Roberto Campos Neto para o BC e, ainda em 2019, o Congresso aprovou a lei de autonomia da autoridade monetária. O Belzebu II seguiu reduzindo a Selic, até 4,25%, em fevereiro de 2020, e mais ainda, sob a contração econômica provocada pela pandemia, a 2% em agosto daquele ano. Não consta que o PT tenha saudado Campos Neto como um ousado combatente na guerra santa contra os celerados banqueiros. Nem haveria motivo: como seu antecessor, ele apenas adotava o protocolo consagrado de política monetária.

Juros caem, juros sobem. O mesmo Belzebu II elevou a Selic ao patamar atual de 13,75%, atingido em agosto de 2022. Não prestava serviço aos demoníacos rentistas, mas reagia à folia fiscal de Guedes, que desmoralizava o teto de gastos para auxiliar a campanha de reeleição de seu mestre. Naqueles dois anos de altas sucessivas dos juros, não se ouviu do PT nenhuma indignada condenação do BC.

— A taxa de juros não tem explicação para nenhum ser humano no Planeta Terra — decretou Lula, sem ler as atas do Copom e excluindo da humanidade nossos mais destacados economistas.

Há figuras notáveis que concordam. Um é o Nobel Joseph Stiglitz, que preferiu pontificar no BNDES a voltar à Argentina esmagada pela obra inflacionária de seu discípulo Martín Guzmán, a quem expressou apoio integral no início do governo de Alberto Fernández. Outro é André Lara Resende, em sua encarnação heterodoxa, convertido em arauto da curiosa tese de que a dívida pública em moeda nacional pode crescer à vontade, sem impactos negativos.

Existe um debate legítimo a travar sobre juros, aqui e lá fora, num ciclo internacional marcado por choques estruturais como a pandemia, a desglobalização e a guerra na Ucrânia. A renitente inflação brasileira tem componentes diversos, e sempre é possível errar na calibragem dos juros. São temas complexos, mesmo para especialistas.

O gráfico histórico da Selic não prova que o Copom tem razão — ou que não tem. O que ele faz é desmascarar a natureza farsesca da campanha contra o BC.

O bombardeio do governo e do PT tem efeito contraproducente. Diante da pressão, o BC é impelido a atestar sua autonomia, a fim de conservar a credibilidade da política monetária, e isso contribui para retardar a queda da Selic. Lula e os seus sabem disso — mas não buscam, de fato, a queda dos juros. Engajam-se na operação populista de esculpir um inimigo conveniente: o “traidor da pátria” destinado a servir como álibi e foco de mobilização da base fiel.

— O Brasil não merece isso — tuitou Gleisi, exprimindo uma verdade involuntária.

 

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