sábado, 15 de abril de 2023

Demétrio Magnoli - O 'tudo' de Zelenski

Folha de S. Paulo

Lula quer negociar a soberania dos outros?

"Zelenski não pode querer tudo", exclamou Lula, indicando a linha que seguiria na visita à China, onde tentou estabelecer uma parceria com Xi Jinping na mediação de eventuais negociações de paz entre Rússia e Ucrânia. "Tudo", aí, significa a Crimeia e a Otan. A primeira renúncia sugerida debilita a posição do Brasil como mediador confiável. A segunda evidencia uma apreciação primitiva das realidades geopolíticas.

O Brasil, cortesia do Itamaraty de Mauro Vieira, votou na resolução da ONU que exige a retirada imediata das forças invasoras russas e o respeito à integridade territorial ucraniana. A declaração de Lula, cortesia do assessor especial Celso Amorim, renegou o voto brasileiro. A Crimeia faz parte do território ucraniano internacionalmente reconhecido. Nenhuma nação que respeita a Carta da ONU tem o direito de propor a cessão de parte do território de um país soberano invadido –como, aliás, explicou a Ucrânia na sua resposta a Lula.

Não há notícia de algum país, com as óbvias exceções da Rússia e da Belarus, capaz de indecência similar. Mesmo a China, com seu vago "plano de paz" que insinua um cessar-fogo temporário para negociações sem retirada das forças russas, absteve-se de desenhar cessões territoriais num futuro acordo de paz. O motivo: sob a vigência do princípio da soberania nacional, só a Ucrânia tem o direito de propor a entrega de áreas do país a uma potência estrangeira.

É possível imaginar um cenário político-militar no qual, em nome de sua sobrevivência como nação independente, a Ucrânia seja obrigada a fazer concessões territoriais. Nada impede que analistas propensos a exercícios especulativos entreguem-se a traçar nos mapas as conjecturais fronteiras ucranianas do pós-guerra. Mas chefes de Estado ocupam lugar diferente. A sugestão aloprada de Lula mancha as credenciais brasileiras junto ao governo ucraniano, ainda que provoque surtos de felicidade no Kremlin.

Antes da invasão russa de 2022, a pretensão da Ucrânia de ingressar na Otan inscrevia-se na esfera das miragens. Os EUA não contemplavam a hipótese de adesão de um país parcialmente ocupado pela Rússia desde 2014, o que implicaria confronto direto com uma potência nuclear. A Alemanha, engajada em estreita cooperação energética com a Rússia, vetava a candidatura ucraniana. Hoje, porém, para diversos efeitos práticos, a Ucrânia já entrou na Otan.

Putin colocou a Ucrânia na aliança ocidental. A noção de neutralidade militar ucraniana podia ser aventada nos meses iniciais da guerra. Mais de um ano depois, estilhaçou-se em choque com os fatos. As munições ucranianas, com calibre dos tempos soviéticos, começaram a se esgotar –e foram substituídas por munições com calibre padrão da Otan. Transferiram-se à nação invadida os sistemas de artilharia e defesa aérea americanos e europeus. Tanques e blindados alemães, britânicos e americanos chegam à frente de batalha. Tropas ucranianas recebem treinamento em países da Otan.

Se a Rússia parar de combater, a guerra acaba; se a Ucrânia parar de combater, a Ucrânia acaba. Depois da guerra, exceto no improvável cenário do surgimento de uma Rússia sem Putin e sem ambições imperiais, a independência ucraniana repousará na proteção da Otan. Nenhum governo ucraniano, salvo um regime títere de Moscou, desistirá do ingresso formal na aliança ocidental. Na outra ponta, os EUA e a Otan experimentariam fatal desmoralização estratégica caso barrassem a entrada da Ucrânia. Só um Trump poderia desfazer o que Putin fez.

Lula não entendeu a guerra –nem sua natureza, nem suas implicações. A guerra imperial russa é, do ponto de vista da Ucrânia, uma guerra nacional de independência. Não se brinca com isso. A aventura de Putin converteu a Otan em pressuposto da soberania dos vizinhos da Rússia. Lula quer negociar a soberania dos outros?

 

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