quarta-feira, 26 de abril de 2023

Luiz Carlos Azedo - A grande política de volta ao Congresso

Correio Braziliense

A utilização perversa de algoritmos tem servido para embaralhar a consciência cívica e enfraquecer a democracia representativa, além de fomentar a violência na sociedade, inclusive nas escolas

Fisiologismo, nepotismo e patrimonialismo, cuja mais perfeita tradução é o chamado “orçamento secreto”, fazem parte da pequena política que move o dia a dia do Congresso: as disputas parlamentares por viagens e apartamentos; as articulações de interesses privados, em detrimento das políticas públicas, nos seus corredores; as intrigas de bastidor em disputas por verbas e cargos no governo; a perversa subsunção dos partidos pelas suas bancadas.

Nesta semana, tudo isso estará em segundo plano, quiçá pelos próximos meses também, porque os grandes interesses da sociedade voltaram à pauta. Por exemplo, a Câmara, ontem, aprovou o pedido de urgência para a votação do projeto de lei das fake news (PL 2.630/2020), que regula a atuação das chamadas big techs no Brasil, assunto já tratado aqui, em 19 de abril, na coluna intitulada “Ministro quer enquadrar as big techs na Constituição”. A votação do requerimento permitirá que a matéria seja votada diretamente no plenário da Câmara, na próxima semana, depois de três anos de tramitação nas comissões técnicas da Casa do projeto originário do Senado. Foram 238 votos a favor e 192 contrários, depois de uma manobra da bancada bolsonarista, liderada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para impedir a votação da urgência. Esse resultado mostra que haverá disputa dura.

Essa é a primeira agenda estratégica para a democracia brasileira em pauta no Congresso. Um exemplo do que é a grande política trata da fundação e conservação do Estado, da manutenção de determinadas estruturas econômico-sociais ou sua destruição. O conceito de hegemonia do pensador italiano Antonio Gramsci é bastante reconhecido, porque descreve como o Estado usa, nas sociedades ocidentais, seus aparatos ideológicos para conservar o poder: a religião, a escola, os meios de comunicação etc. No seu conceito de hegemonia, porém, o pleno exercício do poder político está associado à liderança moral da sociedade.

Numa leitura reacionária dessa abordagem, por essa razão, a extrema direita vê a ciência, a educação e a cultura como ameaças, atua no sentido de neutralizar o papel de cientistas, intelectuais e artistas na construção de uma sociedade democrática, do desenvolvimento sustentável, do acervo técnico-científico e da identidade cultural do país. Mesmo que para isso seja necessário recorrer à força.

O jornalista e cientista político da Universidade de São Paulo (USP) Oliveiros S. Ferreira, já falecido, escreveu um livro sobre o conceito de hegemonia no qual se remete à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que conflagrou a Europa. Nela, um pequeno grupo de 45 cavaleiros húngaros, com suas armaduras, durante seis meses aterrorizou o condado de Flandres, a região flamenca da Bélgica. Repete uma indagação de Gramsci sobre esse episódio: como o conseguiram? Como e por que o grande número, mais forte, se submete ao pequeno?

Golpismo

Ideólogo do pensamento conservador no Brasil, Oliveiros Ferreira foi um estudioso do protagonismo dos militares na história republicana e crítico do castilhismo golpista. Num artigo para o jornal O Estado de S. Paulo, de 26 de junho de 1988, intitulado “O reconhecimento da derrota”, ele resgata uma carta do general Góes Monteiro ao jurista liberal Sobral Pinto, na qual o então ministro da Guerra, em abril de 1945 — ou seja, pouco antes do fim do Estado Novo —, reconhece a derrota do “partido fardado” diante de uma nação “que não compreendia e que nunca poderia compreender”. Segundo ele, porque trouxera da Escola Militar “um modelo de tirania esclarecida”.

“Eu reclamava poder, ordem, disciplina e ardor para, em 10 anos pelo menos, como recorda V.Exa., preparar a nova elite e poder modificar as condições de ignorância e miséria das massas, responsáveis pelo aviltamento da prática constitucional”, lamentava o general do Estado Novo. O ex-presidente Bolsonaro tentou mobilizar seus cavaleiros húngaros três vezes, no 7 de Setembro de 2019, no dia da diplomação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e no 8 de janeiro. Em nenhuma delas conseguiu que as Forças Armadas vestissem as armaduras.

A propósito, hoje a grande política novamente tomará conta dos debates do Congresso, com a instalação de uma CPI Mista para investigar o que aconteceu naquele segundo domingo de janeiro, uma semana após a exuberante cerimônia de posse do presidente Lula da Silva. A votação de ontem, apesar da vitória do governo, mostrou uma oposição aguerrida e numerosa, porém descolada dos interesses majoritários da sociedade e de suas instituições democráticas. É bom lembrar que 8 de janeiro foi o resultado do uso das redes sociais como instrumento de mobilização para a tomada do poder, com uso generalizado de fake news e emprego de violência na ocupação dos palácios dos Poderes da República.

Esse episódio serviu para desconstruir uma visão política glamourosa e idílica das redes sociais e da internet como ferramentas avançadas e absolutas da participação no jogo democrático. Pelo contrário, a utilização perversa de algoritmos tem servido para embaralhar a consciência cívica e enfraquecer a democracia representativa, além de fomentar a violência na sociedade, inclusive entre crianças e adolescentes nas escolas. É preciso mais compromisso das big techs com a ordem democrática e a construção de um ambiente social mais saudável.

 

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