terça-feira, 4 de abril de 2023

Merval Pereira - Ambições à solta

O Globo

Conversa de Boulos e Datena é fruto da situação fragilizada do governo

Os primeiros cem dias do terceiro mandato de Lula não dão margem a um prognóstico positivo, como recentes pesquisas de opinião Datafolha indicam. A não ser para aqueles que se contentam com gestos simbólicos à esquerda, como a suspensão da implantação do novo ensino médio ou o cancelamento da Medalha Princesa Isabel para o combate ao racismo.

Isabel, na definição do Ministério dos Direitos Humanos, “herdeira do trono imperial, uma mulher branca”, foi substituída por Luís Gama, negro abolicionista. A situação fragilizada do governo — diante de um Congresso empoderado e de uma base parlamentar disfuncional — dá margem, a meu ver precipitadamente, a conversas como a ocorrida entre José Luiz Datena, popular âncora de programas policialescos da televisão e eterno candidato a algum cargo político, e o deputado federal Guilherme Boulos, divulgada nas redes sociais ontem.

Surpreendente a começar pelo simples fato de ter sido gravada em vídeo o que seria, segundo Boulos, uma conversa privada. Quem estaria numa mesa como aquela com o celular ligado sem que soubessem ou quisessem? Além desse espanto inicial, a maneira como Boulos, um campeão de votos, ouve atentamente Datena demonstra que leva a sério os conceitos emitidos e chega a concordar em certo momento, afirmando “este é o tema”, quando Datena fala em “peitar o Lula” para que uma chapa Boulos-Datena tenha o apoio do PT na disputa pela prefeitura.

O potencial de votos de Datena é pressentido por todos os partidos políticos em São Paulo, embora nunca tenha sido testado. Datena sempre sai da disputa, mesmo quando está na frente nas pesquisas. Parece desconfiar do comprometimento dos políticos.

— O PT é um partido corrupto — afirma a certa altura, sem que Boulos reaja.

A conversa gira em torno de assuntos delicados, como o futuro de Lula no governo, a chance de o presidente não conseguir lidar com a crise econômica e de levar Boulos junto na derrocada. Datena diz que não sabe se Lula “aguenta o mandato” e faz uma análise da situação do PT em relação a Lula e ao próprio Boulos:

— O PT não gosta do Lula. E não gosta de você também. O PT tem feudos.

Boulos concorda:

— É verdade.

Datena estava tão convicto de que falava entre apoiadores que comparou a situação de Boulos à de Fidel Castro, numa improvisação arrojada depois de ver um retrato do ditador cubano na parede:

— Se o Fidel estivesse pensando que não ia ter dificuldade, ele não ia descer a serra [Sierra Maestra] (…) com o maluco do Che Guevara, o Fulgencio Batista [ditador na época] estava lá até agora.

A conversa é tão maluca que Datena se oferece para ser o Guevara de Boulos. O mais espantoso é que ele já foi o candidato preferido de Bolsonaro, como lembrou o presidente do PT paulista, Kiko Celeguim:

— A opinião do porta-voz do bolsonarismo não quer dizer nada.

O dirigente petista alegou que Boulos “não disse nada” no vídeo. É uma falácia. Boulos concorda com a cabeça quando Datena garante que terá a prova de que o PT, apesar de dizer que sim, não o quer como candidato a prefeito em São Paulo e tentará fazer do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, candidato do partido, para derrotar Boulos e o PSOL.

Confirmando as suspeitas, o PT ontem mesmo, diante da repercussão do vídeo, começou a cogitar a filiação de Boulos a seus quadros, por ter candidatos próprios com força para derrotá-lo. Haddad seria um candidato para mais adiante, provavelmente como substituto de Lula na disputa presidencial. Todos esses lances dependem, no entanto, do sucesso do plano econômico que Haddad coordena, com a aprovação do arcabouço fiscal e, mais adiante, da reforma tributária. Só a proposta de tirar Boulos do PSOL já explicita a visão petista das alianças partidárias mesmo na esquerda, com sua vocação hegemônica que não abre espaço nem para os correligionários.

 

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