sexta-feira, 14 de abril de 2023

Simon Schwartzman* - Freio de arrumação no ensino médio

O Estado de S. Paulo

O caminho é oferecer um leque de escolhas, reconhecendo que existem diferenças, mas sem colocar a população em camisas de força

Finalmente, o Ministério da Educação viu que a reforma do ensino médio não andava bem, e deu uma parada. Agora se discute se ela deveria ser anulada ou se dá para consertar, mas pouco se fala sobre por que foi feita e os problemas que tentou resolver.

O ensino médio tem de atender a uma população de quase 10 milhões de pessoas com condições, interesses e projetos de vida muito diferentes, e não é possível que todos sigam o currículo tradicional, que vem dos tempos de Gustavo Capanema, 80 anos atrás. Era um currículo destinado aos filhos das elites que se preparavam para as profissões universitárias, quando a grande maioria mal completava um curso primário de quatro anos.

Aos poucos, o acesso à educação primária aumentou, até quase se universalizar na década de 1990, tendo como foco a capacitação inicial em leitura, escrita e aritmética. O ensino superior também se expandiu. Falava-se em “universidade para todos”, para o que o ensino médio seria a porta de entrada. O antigo ginásio, para crianças entre 11 anos e 14 anos, se incorporou ao primário, ficando como o patinho feio da educação brasileira, espremido entre os que se preocupam com a alfabetização, numa ponta, e com o ensino médio e o acesso ao ensino superior, na outra.

Mas a educação brasileira se expandiu de forma muito desigual. Uma pequena minoria consegue completar razoavelmente bem o ensino médio unificado, em escolas particulares ou em poucas escolas públicas seletivas, e entra nas carreiras universitárias mais valorizadas. A grande maioria mal cumpre as obrigações mínimas dos currículos obrigatórios e ou fica com um diploma de nível médio sem qualificação profissional, ou tenta uma carreira superior de fácil acesso, mas com grandes chances de ficar pelo caminho e não se profissionalizar.

Em todos os países existem desigualdades na educação, porque as pessoas vêm de ambientes diferentes e têm interesses e capacidades distintos. As escolas podem pouco para compensar as diferenças que os estudantes trazem, e as melhores políticas educacionais são aquelas que buscam compensar essas diferenças o mais cedo possível. Não é à toa que o exame do Pisa, adotado em quase todo o mundo para aferir a qualidade da educação, é aplicado a jovens de 15 anos, quando devem estar completando a educação fundamental e já deveriam ter os conhecimentos fundamentais de leitura, raciocínio matemático e formação geral nas ciências naturais, sociais e humanidades. Muitas das críticas que têm sido feitas à reforma do ensino médio de 2017 são de que ela deixaria de dar a educação geral que seria necessária para todos. Mas é no ensino fundamental, até os 15 anos, e não no médio, que esta formação geral precisa ser dada.

Aos 16 ou 17 anos de idade, que é quando a maioria dos jovens brasileiros entra no ensino médio, as cartas já estão dadas. Pretender que todos vão seguir o mesmo caminho e se tornar universitários é condenar a grande maioria à frustração. Dividir desde cedo os que seguirão os cursos universitários e os destinados aos cursos técnico-profissionais, como tem sido feito na maioria dos países na Europa e na Ásia, pode ser mais eficaz, mas mantém a sociedade dividida em classes e com os menos qualificados sujeitos às incertezas de um mercado de trabalho em permanente sobressalto.

O caminho é oferecer um leque de escolhas, reconhecendo que existem diferenças, mas sem colocar a população em camisas de força. Para os que pretendem entrar desde logo em carreiras universitárias, é preciso permitir que se direcionem desde logo para suas áreas de preferência. É possível desenhar os currículos de muitas maneiras, mas, basicamente, são quatro opções: a formação nas áreas técnicas de Matemática e Engenharia; nas ciências biológicas e da saúde; nas profissões sociais como Administração ou Direito; ou nas artes e humanidades, escolhendo uma como principal e outras como secundárias.

Para os que precisam trabalhar mais cedo, não têm interesse ou condições de seguir desde logo a trilha universitária, deve ser possível oferecer uma formação mais prática e valorizada no mercado de trabalho. Um bom curso profissional de nível médio ou póssecundário pode ser tão ou mais interessante do que muitos diplomas universitários. As redes públicas estaduais não sabem fazer isso, é preciso trazer a ajuda do Sistema S e de algumas poucas escolas técnicas estaduais, e fortalecer o sistema de aprendizagem em parcerias com o setor produtivo. E é preciso abrir mais espaços na educação superior, pela ampliação da formação mais prática e aplicada também neste nível.

Não há como amarrar tudo isso em currículos fixos, mas é possível direcionar as mudanças por meio de um conjunto de exames e certificações que substituam o atual Enem, nas quatro áreas principais de formação e nas principais áreas de formação profissional, como Tecnologia da Informação, profissões de saúde, eletrônica, etc., deixando as redes escolares buscarem seus próprios caminhos.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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