quarta-feira, 5 de abril de 2023

Tiago Cavalcanti e Aloisio Araujo* - Reflexões sobre a reforma tributária

Valor Econômico

Se a evasão fiscal for muito elevada entre os bens finais, a tributação de bens intermediários pode ser indispensável

Desde que Frank Ramsey, célebre matemático, filósofo e economista inglês, publicou seu artigo seminal sobre tributação ótima do consumo em 1927, o desenho eficiente da estrutura tributária de um país tem provocado intensos debates, especialmente entre economistas.

A teoria de tributação ótima procura determinar uma estrutura de taxação que busque a eficiência na alocação dos recursos, dada as restrições de arrecadação dos governos. Os principais resultados teóricos neste tópico têm influenciado propostas de reformas tributárias em diversos países ao longo de quase um século.

No artigo “Optimal Taxation in Theory and Practice”, publicado no Journal of Economic Perspectives, em 2009, Mankiw, Weinzerl e Yagan revisaram vários resultados da teoria econômica sobre tributação ótima. Uma das principais conclusões do artigo é que apenas bens finais devem ser tributados em uma alíquota única. A ideia central é que bens intermediários não devem ser tributados, já que a presença de tributos na cadeia produtiva distorce as alocações dos fatores de produção, como capital e trabalho, entre as empresas e setores. Além disso, bens finais semelhantes devem ser tributados uniformemente, para evitar a distorção das decisões de consumo dos indivíduos e, consequentemente, a queda de bem-estar.

No Brasil, a proposta de reforma tributária da PEC 45/2019 visa simplificar, reduzir a complexidade e aumentar a transparência do sistema tributário, unificando vários tributos federais, estaduais e municipais em um único imposto sobre bens e serviços (IBS).

O IBS segue o modelo dos impostos sobre o valor adicionado (IVA), que corresponde ao desenho de tributação de bens e serviços na maioria dos países desenvolvidos. O IVA não incide em cascata em cada etapa da produção, bens intermediários não são tributados, e é, portanto, diferente das outras formas de tributação indireta, como a tributação sobre o faturamento das empresas. Assim, a reforma tributária atualmente proposta no Brasil tem fundamentos analíticos sólidos, baseados em resultados rigorosos da teoria econômica de tributação ótima.

 

No entanto, a grande maioria dos artigos sobre tributação ótima não considera a questão da sonegação fiscal. No Brasil, não só a evasão de tributos é elevada, como também é heterogênea entre os setores produtivos. Atividades como agricultura e construção civil têm alta evasão fiscal, enquanto produção de petróleo e gás e intermediação financeira têm evasão fiscal relativamente mais baixa.

Além disso, o comportamento da sonegação fiscal varia de forma significativa por setor produtivo em resposta a mudanças nas alíquotas de impostos. Essa é a conclusão apresentada no estudo “Should Governments Tax Commodities Uniformly? Theory and Evidence from Brazil”, que realizamos em conjunto com os economistas Breno Albuquerque e Gil Navarro.

Em 1999, houve um aumento quase uniforme de 50% na alíquota do Cofins, imposto que incide sobre o faturamento das empresas, para todos os setores de atividade, enquanto o imposto PIS, que também tem incidência sobre o faturamento, permaneceu inalterado. Com base nessa mudança do Cofins e na manutenção da alíquota do PIS, foi possível calcular a diferença entre o aumento real da receita fiscal de cada setor produtivo e o aumento que teria ocorrido na ausência de evasão fiscal do Cofins. Esse cálculo permitiu determinar a elasticidade da evasão fiscal em relação à alíquota do imposto por setor de atividade no Brasil.

Os resultados obtidos indicam que um aumento de 50% na alíquota de um imposto, como ocorreu com a Cofins, resulta em um aumento da evasão fiscal de 18% na construção civil e apenas 2,5% no setor de intermediação financeira, evidenciando uma heterogeneidade significativa entre setores.

Com base nesta motivação empírica, introduzimos a evasão fiscal em um modelo econômico que considera diversos setores produtivos com bens intermediários e finais. Constatamos que, na maioria dos casos, não deve haver tributação sobre os bens intermediários. Ou seja, a estrutura do IVA se mostra robusta quando a evasão fiscal é considerada, porém a tributação uniforme de bens finais não é necessariamente recomendável do ponto de vista de eficiência econômica.

A explicação fundamental é que uma alíquota uniforme não implica uma taxação efetiva uniforme, uma vez que setores com maior evasão fiscal tendem a apresentar alíquotas efetivas menores. Ademais, demonstramos que se a evasão fiscal for significativamente elevada entre os bens finais, a tributação de bens intermediários pode ser ótima e indispensável.

Nosso objetivo não é argumentar que a proposta de reforma tributária atualmente em curso na Câmera Federal se mostra equivocada. Evidente que há vários pontos cruciais de simplificação e transparência que poderiam levar à redução da evasão fiscal e diminuição do lobby político dos diversos setores produtivos em busca de menores alíquotas. No entanto, é fundamental compreendermos as características da economia brasileira e reconhecermos que a maioria das propostas para a implementação de um IVA único não leva em conta a evasão fiscal e sua heterogeneidade entre os distintos setores produtivos. Além do mais, poucos países de fato tem IVA único.

O debate precisa ser aprofundado para chegarmos a um estrutura tributária minimamente eficiente. Não podemos perder esse atual momento histórico quando as mais diversas correntes políticas verbalizam que irão apoiar esta importante reforma para o país.

*Tiago Cavalcanti é professor titular de Economia da Universidade de Cambridge, da FGV-EESP e colunista do Valor.
Aloisio Araujo é professor titular da FGV-EPGE e pesquisador emérito do IMPA

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