Valor Econômico
Deduções de despesas da classe média na
declaração do Imposto de Renda tornam sistema tributário do país mais injusto
Duas semanas atrás, usei este espaço para
criticar os benefícios que a indústria automobilística sempre recebeu no
Brasil, fatura que acaba de crescer com o relançamento do novo “carro popular”
de Lula. Na segunda passada, chamei atenção para as elevadas remunerações da
elite do funcionalismo nos três Poderes da República, e de como essas carreiras
têm pressionado por maiores penduricalhos salariais.
O Estado brasileiro é pródigo em conceder benesses das mais variadas naturezas para empresas e indivíduos que se julgam merecedores de tratamento diferenciado, sob os mais diversos argumentos. São tantas as regalias que fica fácil apontar o dedo para os agraciados. Difícil é admitir nossos próprios privilégios.
A entrega da declaração do Imposto de Renda
é uma ótima oportunidade para cada um de nós, brasileiros “de classe média”, se
reconhecer como parte da elite do país e refletir sobre as injustiças de um
Estado que nos trata indevidamente tão bem.
Embora reclamemos que pagamos 27,5% de IR
(o que já não é verdade, pois esta é a alíquota máxima e incide apenas sobre
parte dos rendimentos), a realidade está longe de ser essa.
Falo por mim. Este ano, eu e minha esposa
pudemos abater no IR nossas contribuições para a previdência complementar.
Também entraram no cômputo das deduções todas as despesas que nossa família
teve com plano de saúde privado, médicos particulares, psicólogos e dentistas.
As mensalidades da escola particular de nossos filhos também reduziram a base
de cálculo do imposto final, ainda que neste caso haja um limite definido pela
legislação.
Existem muitas justificativas para
recebermos esse cuidado especial das normas tributárias. O incentivo para a
previdência complementar destina-se a estimular a poupança de longo prazo,
tendo em vista que, por mais que no futuro tenhamos que pagar o IR sobre os
saques do valor acumulado, a diferença ao longo do tempo é uma baita vantagem
individual.
No caso das despesas médicas e de educação,
o Estado compensa a “classe média” por ter que contratar no setor privado
serviços que são obrigação do Estado prestar, mas a qualidade é muito ruim.
O peso dessas deduções pode ser conferido
por cada um em sua declaração do IR. No canto inferior esquerdo da tela
principal do aplicativo da Receita Federal e também na ficha “Cálculo do
Imposto”, é informado o valor da “alíquota efetiva” do IR pago. Trata-se da
razão entre o imposto devido (calculado após deduções) e o total dos
rendimentos tributáveis. No meu caso, a alíquota efetiva foi de 14,75%, bem
abaixo dos 27,5% que a maioria de nós acredita pagar.
Olhando para nosso próprio umbigo, as
deduções podem até fazer sentido. Na maioria das vezes, contudo, perdemos de
vista que ao usufruirmos desses benefícios que o Estado nos dá, nos tornamos
cúmplices da deterioração dos serviços públicos para aqueles que mais precisam
deles.
As deduções do IR relativas a planos de
saúde e profissionais da área médica retirarão dos cofres públicos R$ 24,5
bilhões em 2023, segundo prevê a Receita Federal. No caso das despesas com
educação privada para titulares e dependentes, serão outros R$ 5,4 bilhões.
Se esses valores chamam a atenção pelo seu
montante total, a distorção fica ainda maior quando se constata o que
representam como um todo. Segundo cálculos do Boletim Mensal sobre os Subsídios
da União, do antigo Ministério da Economia, em 2017 o que a União deixou de arrecadar
com os descontos de despesas médicas no Imposto de Renda da “classe média”
representou 13% de todos os gastos do Ministério da Saúde com o SUS naquele
ano.
De uma certa forma, portanto, a legislação
me torna responsável pelo subfinanciamento do SUS. Os pagamentos que minha
família fez com tratamento médico e odontológico e são abatidos do nosso
Imposto de Renda contribuem para o tratamento médico e odontológico que a
maioria da população pobre terá em quantidade e qualidade bastante inferiores.
Mas devo admitir que meus privilégios no
Imposto de Renda deste ano não param aí. Aproveitando a generosidade da
legislação brasileira, há quatro anos a maior parte dos trabalhos que eu faço é
paga por meio de uma pessoa jurídica que abri em meu nome. Por meio desse
artifício perfeitamente legal, pago uma alíquota diferenciada de tributos sobre
meus rendimentos e ainda conto com a isenção do Imposto de Renda sobre lucros e
dividendos.
Como sobre o grosso do que eu recebo não
incide o IRPF, o cálculo da alíquota efetiva na declaração para a Receita
Federal está superestimado. Se eu somar aos meus rendimentos totais os lucros e
dividendos auferidos como “pejota”, eu paguei em 2022 efetivamente 9,2% da
minha renda total - ou seja, um terço dos ditos 27,5% que acreditamos ser
tributados.
O Ministério da Fazenda promete para ainda
este ano uma segunda fase da reforma tributária. Nela, pretende-se fazer uma
completa reformulação de benefícios como a dedução de despesas médicas e de
educação e a isenção de lucros e dividendos. Num país tão desigual como o
Brasil, é mais do que justo eliminar privilégios como os presentes na minha
declaração de Imposto de Renda - e muito provavelmente na sua também.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Apoiado.
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