segunda-feira, 8 de maio de 2023

Bruno Carazza* - Na política atual, não há infidelidade, e sim poliamor

Valor Econômico

PL das fake news e decreto do saneamento mostram que lua de mel acabou

Para o presidente que não se cansa de repetir que tem “energia de 30 e tesão de 20 anos”, é bom se acostumar à modernidade. Quase uma década e meia depois de ter deixado a capital federal, os relacionamentos em Brasília estão diferentes. Em tempos de Tinder e afins, hoje ninguém é de ninguém. Com parceiros empoderados e o patriarcado questionado, fidelidade é coisa do passado.

Há 20 anos não era assim. No jogo de sedução entre o presidente e os parlamentares, as relações eram desiguais. O governo controlava o dinheiro - do orçamento e dos cargos - e com isso impunha as suas vontades. Havia traições, muitas na verdade, e casamentos se mantinham por aparência. Mas quase sempre o Executivo conseguia o que queria, mesmo pagando caro por isso.

Com o passar dos anos, deputados e senadores se empoderaram. Aprenderam a dizer “não” para medidas provisórias abusivas. Trataram de criar fontes de recursos, primeiro com as emendas impositivas e depois a liberdade do orçamento secreto. Se o presidente não os tratar com respeito, ameaçam com derrubada de projetos, CPIs e até impeachment.

Relações não consentidas também deixaram de ser toleradas. O Congresso passou alguns anos discutindo o novo marco legal do saneamento, buscando um equilíbrio entre as companhias estaduais de água e esgoto, que se mostraram incapazes de universalizar o acesso a tratamento nas últimas décadas, e o investimento privado. Lula, porém, resolveu forçar a barra e alterar a legislação por decreto. Tomou o troco na semana passada.

Lula acredita que foi traído. A maioria dos votos que derrubaram seu decreto veio do MDB, do União Brasil e do PSD, logo as siglas que foram contempladas com um dote de três pastas cada uma na Esplanada dos Ministérios.

Lula não tem idade para sentimentalismos e ingenuidade. Ou será que ele acreditou nas juras de amor de Renan Calheiros, Bivar e Kassab no altar, naquele 1º de janeiro de 2023, e todas aquelas promessas de serem fiéis, na alegria e na tristeza, na saúde e da doença, até o fim do mandato?

A verdade é que partidos como MDB, União Brasil e PSD têm o coração partido, como diria Cazuza. Casamentos por conveniência sempre existiram no presidencialismo de coalizão, mas agora é mais complicado. Parte de seus integrantes gosta de Lula, mas outros se encantaram por Bolsonaro nos últimos anos. As ilusões estão perdidas, então?

Lula precisará tratar com muito carinho os deputados e senadores dessas legendas para que atendam seus desejos no Congresso. E não se trata apenas de conceder mais cargos ou fatias cada vez maiores do orçamento. Relacionamentos, para serem duradouros, demandam atenção, presença e, sobretudo, reciprocidade.

Entre Lula e os políticos da centro-direita que ele atraiu para sua base há muitas diferenças em suas visões de mundo. Discordam sobre o tamanho do Estado e sobre a autonomia do Banco Central. Há também desconfianças: no PL das fake news, parlamentares suspeitaram das segundas intenções dos petistas nos dispositivos propostos.

Para garantir paz e harmonia em sua vida, Lula terá que respeitar as opiniões de seus parceiros. Para complicar, eles são conservadores nos costumes, e liberais na economia - exatamente o contrário do que pensam os petistas. Essa incompatibilidade de gênios mantém a tensão em alta. E sempre que Lula se deixar levar pelas tentações ideológicas da esquerda, dormirá no sofá nas votações legislativas.

No passado, presidentes tentavam superar as crises matrimoniais em sua base recorrendo a relações extraconjungais com o Centrão. Nesse caso, não havia sentimentos envolvidos: o governo satisfazia suas necessidades pagando por isso. O próprio Lula, em seus mandatos anteriores, foi um cliente habitual, instituindo até mesmo um sistema de pagamentos regulares pelos votos recebidos.

Hoje em dia, o preço desses serviços anda inflacionado, com integrantes do Centrão cheios de pudores conservadores fazendo charme para ceder à corte feita pelo governo. Por outro lado, o caixa do Executivo já não permite muitas estripulias.

As desventuras do governo Lula em seu relacionamento com o Congresso na última semana, com o adiamento da votação do PL das fake news e a derrubada do decreto do saneamento, parecem ter decretado o fim da lua de mel e são um mau presságio para o restante de seu mandato.

Com pouco mais de 120 deputados, o PT e os partidos de esquerda elegeram a menor bancada na Câmara desde 1998. A opção de se aliar com MDB, PSD e União Brasil era o movimento natural para enfraquecer Arthur Lira e reduzir a dependência do Centrão. Esses partidos, porém, não são coesos como as legendas da esquerda, possuindo quadros antilulistas e parlamentares sem afinidade com as ideias do governo. Para complicar, o petista enfrenta oposição de bolsonaristas disposta a criar dificuldades a cada vacilo do governo.

Assim, sempre que Lula insistir em colocar em pauta projetos intervencionistas ou que incomodem as bancadas conservadoras, receberá votos contrários na própria base, muito fragmentada. Para aumentar a margem de segurança, o governo precisa buscar votos no Centrão de Lira; esses apoios, contudo, quando pagos no varejo e não no atacado, custam mais caro.

Na nova configuração do presidencialismo de coalizão, o Congresso se empoderou e ficou difícil para o Executivo exigir fidelidade em todas as votações relevantes. Na política, em que a monogamia nunca foi a regra, vivemos a época do poliamor...

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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