domingo, 28 de maio de 2023

Carlos Melo - Inércia e ''Lirismo'', a oligarquia de coalizão

Ipo News

O cientista político Carlos Melo, professor Sênior Fellow do Insper, considera que o modelo do "Lirismo", numa referência criada para o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, se resume ao fisiologismo agregador: uma "Oligarquia de Coalizão" ou a oligarquia das coalizões. Seu novo artigo foi publicado esta semana, no Headline Ideias:

Em inércia, o movimento tende ao infinito. Um corpo interrompe ou altera sua rota somente se alguma força atuar sobre ele. Física básica. Em política, sem obstáculos, forças ou aparas, o movimento de indivíduos e ou grupos se volta aos próprios interesses. Se nada o detiver, seguirá retilíneo, uniforme e indiferente ao interesse geral. Farinha pouca, sem pressão, não sobrará raspa de pirão.

A política se traduz pela multiplicidade de atores e o conflito entre seus reais interesses. A filosofia elaborou o "sistema de freios e contrapesos", pensado para impedir transtornos de movimentos, mais que autônomos, deletérios. "Como o gás, o poder tem a forma daquilo que o contém". Sem limites, se espalha. Dependendo das condições atmosféricas, se dissipará jamais.

Contestação e oposição impedem a tirania. Não há democracia sem elas. Tampouco há democracia sem responsividade (Robert Dahl). A ausência de oposição é a mãe das oligarquias.


Não faz muito tempo, dava-se à opinião pública o poder de conter a inércia e o gás dos interesses particularistas. A imprensa, por exemplo, nasceu da ânsia contra-hegemônica. O debate se dava pelos jornais; a grande reflexão, nos cadernos de domingo. Formar opinião era sinal tanto de distinção quanto de poder. Daí o termo "quarto poder". Paradoxalmente, a explosão de meios de comunicação, as redes sociais e suas bolhas, fragmentou a crítica e dividiu a opinião pública.

Outros poderes, é claro - Executivo, Legislativo e Judiciário - também se impunham, em harmonia, e limitavam-se mutuamente. Partidos políticos "fora da ordem" questionavam e expunham os "da ordem". Mobiliava-se a opinião pública por meio da imprensa. Constrangimentos estabeleciam limites: o certo e o errado; o legítimo e o espúrio. Substituídos pelas bolhas das redes, os partidos, hoje, somam zero.

Embora o patrimonialismo faça parte da cultura imemorial do país e o fisiologismo seja sua constante, esses elementos sofriam constrangimentos e limites. A pressão externa inibia o atrevimento e freava o alargamento de suas possibilidades. Absurdos como os de hoje ocorriam, sim, mas tinham desdobramentos. O tamanho da repercussão negativa definia o comedimento.

Prova de que esse espírito vai distante, se não no tempo, na tolerância, são as reações à decisão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados ao aprovar ampla e irrestrita anistia a partidos que não cumpriram as determinações da lei eleitoral. Uma gritaria básica, seguida de acomodação. O corporativismo parlamentar foi normalizado.

Fosse apenas isso... A advocacia em causa própria do corporativismo não para por aí: nos jornais, nas rádios, redes e TVs, a consolidação do status quo. Cenas de favorecimento e chantagem explícita são exibidas com naturalidade de comerciais de margarina. Já não chocam nem chamam à apartes. Em inércia, correm livres. Nada parece capaz de lhes conter.

Centrão, de refúgio à redenção do baixo clero

Há uma década, o Centrão era pouco mais que um refúgio de políticos menores. Relevante, por seus membros se agruparem em busca de importância, recursos e proteção. Posicionando-se no Congresso de forma pivotal, constituíram a minoria decisiva: pendesse para o lado que preferisse, daria a vitória ao governo ou à oposição - invariavelmente, ao governo. Mas, não era o centro gravitacional do sistema.

Eram movimentos estratégicos e, ainda assim, tímidos. Guardavam certo pudor em público. Os políticos do Centrão viviam, sobretudo, nos rincões, de menor fiscalização e controle social. Para além de suas lideranças mais ousadas, não se expunham aos holofotes da mídia, nem ao peso dos julgamentos da opinião pública. Na catedral do Congresso Nacional, era chamado "baixo clero".

Figuras de expressão paroquial, movidas pelo mais tosco fisiologismo, faziam a política miúda dos favores, do clientelismo; de esquemas quase amadores. Vereadores federais, quando muito. Constrangido pela imprensa e limitado por certa moral ainda vigente, "o baixo clero" tinha arranque, mas não ganhava inércia. Autonomia de baixa quilometragem, pois seu combustível era dosado pelo Executivo e pelo conflito entre partidos. À sombra do debate nacional, fartava-se de sobras e de pequenas barganhas. Não muito mais que isso.

Distinguia-se do "alto clero", sempre na esfera das grandes questões nacionais. Era a elite formuladora e formadora de opinião, dentro e fora do Legislativo. Vinhos doutra pipa, parlamentares de outra expressão: Ulysses Guimarães, Nelson Jobim, Pedro Simon, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, José Serra, Luiz Inácio Lula da Silva, José Dirceu, José Genoíno; Petrônio Portela, Marco Maciel, Roberto Campos, Delfim Netto... Eram vários, às dezenas.

A grande barganha - termo pejorativo para o senso comum --, natural da negociação política, dava-se no campo do debate de interesses de projetos contraditórios. Evidentemente, um pouco de graxa fisiológica lubrificava engrenagens, mas a grande política, o grande conflito e a articulação de atores eram o oxigênio do "alto clero". A disputa corria pelo jogo da política. Em comparação ao atual, era outro esporte.

A oposição pouco transigia, embora houvesse, sim, casos de cooptação. Havia disposição firme em transformar o país. No embalo dos anos 1950 - em especial 1958, ano em Brasil do futuro foi potencializado -, acreditava-se no futuro. O futuro valia embates, riscos, cabos-de-guerra, escaramuças. Nada funcionava por inércia.

Muito disso se perdeu. Forças opostas se compuseram ou simplesmente perderam relevância. O maior equívoco, talvez, tenha sido a infeliz percepção - de um pragmatismo de curtíssimo prazo - de que mais compensava "comprar" parlamentares do que os persuadir. O Mensalão é símbolo, mas não seu marco fundador: esse mercado existia antes dele. Dá-lhe centralidade comprometeu o futuro. A voracidade fisiológica ganhou inércia e deu luz ao hiperfisiologismo.

Reminiscência de quem vai ficando velho? Não faz tanto tempo assim. Tudo se danou em menos de uma geração.

Eduardo Cunha: marco emancipatório

A liberdade de movimentos de Eduardo Cunha, ainda antes de assumir a presidência da Câmara dos Deputados, sinaliza o início da emancipação do espírito corporativo e a dificuldade de contê-lo. Ao relatar Projetos de Emenda Constitucional ou Medidas Provisórias, o então deputado impunham a lógica de seus interesses. Erro brutal dos governos Lula e Dilma não agirem para sua contenção.

Eduardo Cunha era profissional dos negócios políticos: trabalhador, inteligente e sagaz, capaz e sem limites. Capaz de tudo. Com um poder crescente nas mãos, primeiro como líder do PMDB, não encontrou força que contivesse sua expansão. Reuniu recursos, cooptou colegas e fragmentou (ainda mais) os partidos. No espírito franciscano do "é dando que se recebe", levou ao limite o que, à época, foi chamado de "peemedebismo".

Para além do "peemedebismo", Cunha criou uma força política sua. Num "cunhadismo" revisitado, sua tribo trabalhava para encher-lhe as naus com o pau-brasil do poder. Dividido no apoio parasitário à Dilma Rousseff, o Centrão foi agregado aos poucos. Na mesma lógica franciscana, ajudou a eleger centenas de deputados. E por centenas de deputados foi, franciscanamente elevado, depois, à presidência da Câmara.

Como se sabe, morreu abraçado com sua ousadia. Mas, a obra vive, seu espírito ganhou o éter. No "peemedebismo avançado" que desenvolveu, educou discípulos.

Rodrigo Maia, à testa da mesa diretora da Casa, após a debacle de Cunha, bem tentou recuperar os bons modos do parlamento. Resgatar compostura mínima. Reconheça-se hoje, tratava-se de uma figura em extinção: investisse na desgraça de Michel Temer, seria um presidente "designated survivor". Mas, demonstrou princípios: sua fé liberal o amarrou ao mastro da mesa da Câmara, contra os cantos de sereia. Talvez fosse a última espécie do "alto clero".

O latifúndio que abriga nossa alma

Maia resistiu, mas foi atropelado pelos discípulos de Cunha, cuja maior expressão chama-se, obviamente, Arthur Lira. No silêncio de uma observação matreira, na rudeza de um espírito agreste, Lira superou o mestre.

Sua ascensão ao poder central do Parlamento fez o Centrão "cair pra dentro", integralmente. Venceu quedas-de-braço, uma a uma: primeiro Rodrigo Maia, depois Baleia Rossi - último e frágil espasmo "peemedebismo". Mais tarde, Jair Bolsonaro.

Quase todo o parlamento acorreu a Lira - inclusive, setores do PT. A Câmara assimilou e foi assimilada por um novo modelo: o Centrão é hoje o centro gravitacional e toda a lógica do sistema. Lira é apenas um nome símbolo. O latifúndio que abriga na nossa alma, como diria Oliveira Vianna, libertou-se da prisão de ferro dos constrangimentos. Ganhou movimento retilíneo uniforme e vive a liberdade da inércia.

Que nome poderia ser atribuído a essa fase pós "peemedebização"? "Centrismo" seria inexato, pois não se trata de um "centro político clássico". Pouco adequado por ambíguo, subestimaria o papel, a sagacidade e a importância de sua principal liderança: Arthur Lira.

Mais preciso seria chamá-lo, quem sabe?, de "Lirismo". Nova modulação do poder e novo método de formação de maioria. Sem o ônus da gestão de um ministério, as emendas do orçamento são adrenalina na veia.

O "Lirismo" não se trata de "Parlamentarismo" ou de "Semipresidencialismo" à moda dos europeus. Longe disso, o modelo se resume ao fisiologismo agregador. Uma "Oligarquia de Coalizão" - ou a "coalizão de oligarquias" - cujo movimento é inercial, sem freios. Não há presidencialismo. Nem mesmo um líder de massas, como Lula, parece capaz de obstruí-la.

Chico Buarque e Ruy Guerra sabiam das coisas: "todos nós herdamos do sangue lusitano uma boa dose de lirismo, além da sífilis, é claro".

Criminalização da política?

De anos para cá, qualquer negociação de interesses, elevados ou vis, para o bem e para o mal, recebe a tarja de "política". Por proselitismo pueril, a política paga patos e pecados. Mas, nem tudo que tem má fama é política. No pôquer entre Executivo e Legislativo, pequenos interesses inicialmente periféricos deslocaram-se para o centro da cena e dão as cartas. Tornaram-se a essência do processo.

O tal arcabouço fiscal, por exemplo, não é aprovado por exigência de higidez nas contas públicas, premência do desenvolvimento, bem maior ou o que o valha. Mas, como contingência de um modelo voltado para fins próprios: interessa ao Congresso aprová-lo porque interessa-lhe que o governo libere verbas. Grandes temas findam acessórios e perfunctórios: tudo é "baixo clero".

Aliás, "baixo clero" é um termo em desuso. Ninguém é o oposto daquilo que não há ou deixou de ter nome. O "alto clero" dissipou-se sem lembrança, sem saudade, sem a compaixão de uma sociedade apática, desobstruente dos caminhos por onde a inércia faz longa a estrada. Deputados e senadores paroquianos rolam interesses de aldeia como pedras que descem montanhas, sem obstáculos, construindo avalanches.

Um sistema de vontades particularistas foi naturalizado, em detrimento de temas e questões gerais. A isso dão o nome de "política". E, diante de qualquer alerta, crítica ou reparo, seus defensores, irritados, gritam: "parem de criminalizar a política!"

Não se trata disso: não vai aqui simpatia tardia ao "lavajatismo" predatório da última década. Nem de mirada moralista sobre o sistema. É sabido que a política nem sempre é feita de princípios ou valores elevados. Sujar as mãos pode ser necessário. Assistam "Lincoln" (2012), com Daniel Day-Lewis. A história ensina que a política tem sua própria moral.

O fato é que o pragmatismo míope produziu sérias disfuncionalidades. Ao se considerar custos de transação, prejuízos públicos e o mal-estar instalado, encara-se um sistema de profunda ineficiência. Sistema que travou. E, se pode impedir que Executivos troquem pés pelas mãos e façam bobagens - seja com Bolsonaro ou Lula - também há de se admitir que, por disfuncional, não resolve problemas, repara defeitos ou traz investimentos.

No lirismo da inércia, vê-se ao longe uma carroça velha que segue rangendo suas rodas numa melodia triste. Deve doer a desolação de nunca encontrar fim a esse canto e a esse movimento. Na inércia do "lirismo" modelar de sistema tão disfuncional, não há freios, nem contrapesos. Não há força que atue. Sem obstáculos, o país desce a ladeira da montanha que acabara de escalar movido pela inércia de interesses que não são seus.

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