terça-feira, 16 de maio de 2023

Daniela Chiaretti - O Cadastro Ambiental Rural e o boneco João Bobo

Valor Econômico

Qual o recado que está sendo dado com a pressão para que o CAR volte ao Ministério da Agricultura?

João Bobo, também conhecido como João Teimoso, desde sempre é socado pra cá e pra lá, pobre boneco. Mas também desde sempre retorna ao centro graças a um peso de lastro colocado em sua base arredondada. A ideia pedagógica do brinquedo não é ativar o gosto pela luta nas crianças, mas incentivá-las ao equilíbrio. Pois bem: a discussão corrente sobre o Cadastro Ambiental Rural, o CAR, de sair do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática (MMA), seu ponto de origem, e retornar ao Ministério da Agricultura (Mapa), onde foi levado no governo Jair Bolsonaro, lembra o movimento do João Bobo, só que com fundamentos menos nobres e divertidos.

A responsabilidade pelo CAR é do Serviço Florestal Brasileiro, órgão criado em 2006 dentro do MMA para gerir florestas públicas. No governo Bolsonaro, o Serviço Florestal migrou para a Agricultura, e o CAR foi junto. No primeiro dia do governo Lula, voltou tudo para o MMA. A bancada ruralista manifestou seu incômodo com o movimento. O que motiva o descontentamento, segundo observadores, é o CAR. Há uma forte movimentação no Congresso para trazer o instrumento de volta ao Mapa.

Na votação da MP 1.154, que estabelece a reestruturação e organização administrativa do Executivo e foi assinada pelo presidente Lula no primeiro dia de governo, ambientalistas temem que o Congresso leve o CAR de volta à Agricultura. Vários congressistas assinam emendas na MP com essa proposta. É possível que a MP 1.154 seja votada em breve.

Dando um passo atrás: nas discussões em torno de sua criação, em 2012, usou-se o argumento de que o CAR poderia ser uma ferramenta de planejamento territorial, de gestão da produção e da paisagem - ou seja, muito mais um mecanismo de indução do desenvolvimento rural que de comando e controle. Se a inscrição no CAR é obrigatória a todos os imóveis rurais, o preenchimento dos dados é feito de forma declaratória pelos proprietários. As informações seriam verificadas depois pelos órgãos ambientais estaduais, e quem tivesse passivo ambiental deveria recuperar as áreas de reserva legal e de proteção permanente. Funcionou? Não.

Em 13 anos, embora a inscrição dos imóveis rurais no CAR seja de quase 100%, a validação cobre um percentual ridículo. E como os dados são fornecidos pelos proprietários, e pode-se mentir sobre área desmatada, é fácil entender por que a validação dos dados é fundamental.

O objetivo do CAR foi desviado por fraudadores. Começou a ser apresentado como um documento fundiário, mesmo que o Código Florestal de 2012 proiba que seja usado para regularizar propriedades ou posses de terra. O instrumento, que deveria indicar se aquele imóvel rural está ou não ok com a lei ambiental, começou a ser um papel para legitimar ocupação irregular da terra. Muitos milhões de hectares foram cadastrados como propriedades privadas sobre terras indígenas.

O Mapa, é verdade, criou uma plataforma de gestão territorial integrando vários dados rurais enquanto o Serviço Florestal esteve sob sua gestão. Mas o avanço na validação do CAR foi pífio. “Na minha leitura, o principal aspecto para transferir o CAR ao Mapa era tirar do instrumento qualquer risco de uso para fiscalização”, diz Valmir Ortega, que foi secretário do Meio Ambiente do Pará e vice-presidente do Ibama na primeira gestão da ministra Marina Silva.

Ortega fala com conhecimento de causa. É um dos criadores do CAR no Pará, em 2008, o primeiro cadastro ambiental rural do Brasil. “O que criamos foi inspirado na experiência pioneira do licenciamento ambiental de Mato Grosso, que começou em 1998 e era uma tentativa de licenciar atividades rurais a partir do georreferenciamento dos imóveis. O que fizemos foi focar a ferramenta no cumprimento das obrigações do Código Florestal. O imóvel rural, com ou sem atividade produtiva, precisa ter área de proteção permanente e reserva legal e cumprir as obrigações da lei”, resume.

O Código Florestal é de 2012. Já tem 11 anos. Se houve um avanço bem significativo na etapa de inscrição dos imóveis com o CAR, o desafio da validação segue forte. “ Há um imenso setor que não quer que este processo ande. Quem deve não tem interesse em pagar a dívida”, diz Ortega.

Em época em que empresários mandam foguetes ao espaço e que a inteligência artificial permite que se tenha uma conversa com Freud no café da manhã sobre qualquer tema, seria tão difícil criar um filtro no sistema do cadastro que impeça que imóveis sejam inventados sobre terras indígenas? E que depois retire os CARs que foram sobrepostos a esses territórios? É tão complexo acelerar o processo de validação? “Não é mero problema tecnológico. É uma disputa política. O sistema pode ter filtros e há condições tecnológicas de avançar muito. Agora, acelerar o processo, é expor a dívida”, resume Ortega.

O CAR é um instrumento para ajudar a combater o desmatamento e diminuir o crime ambiental. Se a pressão é para que volte ao Mapa, qual o recado que está se dando? Que no Ministério da Agricultura é mais fácil burlar a lei? Dá para desmatar e ficar por isso mesmo? No fim de abril, os ministros Carlos Fávaro (Agricultura) e Marina Silva (Meio Ambiente) deram um recado conjunto de seu entendimento sobre o CAR. Fávaro resumiu: “Apresentamos a garantia de que, independentemente do ministério ao qual esteja relacionado, o CAR será tratado conforme a lei: nem terá rigor excessivo por parte do Meio Ambiente nem qualquer tipo de precarização ou flexibilização no Mapa. Vamos cumprir a lei”.

 

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