sábado, 6 de maio de 2023

Demétrio Magnoli - A mentira e o crime

Folha de S. Paulo

Plataformas temem a corresponsabilização por discursos que publicam

Sempre que leio os argumentos dos que se opõem ao PL das Fake News, torço pela sua aprovação. Quando, porém, leio os argumentos dos defensores do PL, torço pela sua rejeição.

Se escrevo um texto criminoso neste espaço, a Folha partilha o ônus jurídico; se uma rede social difunde o mesmo texto, sofro sozinho as potenciais consequências, enquanto a plataforma contabiliza os lucros. As plataformas de internet temem, acima de tudo, o núcleo correto do PL: a corresponsabilização por discursos criminosos que publicam. O modelo de negócio delas organiza-se em torno do impulsionamento da palavra que acirra emoções primitivas –ou seja, no mais das vezes, o discurso extremista. Por isso, rejeitam as leis de responsabilidade que regulam a imprensa.

Os oponentes do PL alargam o conceito de liberdade de expressão até fazê-lo abranger o crime. O Facebook foi o veículo principal da campanha de limpeza étnica conduzida pelos militares de Mianmar contra os muçulmanos Rohingya. Foi, igualmente, o megafone da campanha de ódio do governo nacionalista hindu de Narendra Modi contra os muçulmanos indianos.

Discursos exterministas circulam nas redes, mirando judeus, cristãos, negros e uma infinidade de outros grupos. No Brasil, as plataformas serviram à campanha antivacinal de Bolsonaro e à articulação dos atos golpistas do 8/1. O que é crime fora das redes, é crime nas redes. Os inimigos do PL almejam perpetuar a "liberdade" de disseminar discursos criminosos.

Mas queremos criminalizar o crime ou a mentira? No seu texto, acertadamente, o PL limita-se ao primeiro. Já seus defensores mais entusiasmados clamam pela eliminação da "mentira", da "desinformação". As freiras imaculadas esqueceram que a inverdade é parte do discurso político desde (pelo menos) os debates no Senado Romano no século anterior à Era Cristã?

O episódio Google evidenciou a extensão da ira santa. O Google violou a confiança de seus usuários ao transformar a página neutra de busca em suporte de um link editorial. Foi um gesto antiético de uma empresa na sua relação privada com os consumidores. Ela plantou a semente da desconfiança sobre seu bem mais precioso, que é o mecanismo de busca, mas não cometeu um crime contra a ordem pública.

Segundo a lógica do PL, o Google deve ser tratado como veículo de imprensa. Nesse caso, o que ele produziu foi, apenas, um editorial. As freiras reagiram enrolando-se no sagrado pendão auriverde e invocando nada menos que a Pátria e a Soberania (maiúsculas, aí). Juízes sem freios entraram no jogo, anunciando sanções preventivas e exigindo uma "imparcialidade" que não figura em nenhuma lei. Por algumas horas, o Brasil vestiu-se com as fantasias da China, da Rússia, do Irã ou da Arábia Saudita...

Banir a "desinformação"? Prenderemos o bolsonarista que qualificar o AI-5 como um instrumento da "guerra ao comunismo"? Encarceraremos o arauto brasileiro de Putin que justifica a invasão da Ucrânia pelo "combate ao nazismo"? Também sentenciaremos Lula por classificar um impeachment fiscalizado pelo STF como golpe de Estado?

As freiras histéricas não escondem sua utopia mais perigosa: entronizar a Verdade (com maiúscula). Entretanto, como se sabe, o Reino da Verdade é, invariavelmente, o outro nome do totalitarismo. A democracia recusa a verdade oficial. Nela, o que existe são verdades, no plural –e, justamente por esse motivo, admite-se a liberdade partidária e exigem-se eleições competitivas.

O PL tem defeitos óbvios, como a cláusula vergonhosa que permite à casta parlamentar a produção de discursos vedados aos demais e as ambiguidades sobre a fonte e natureza de um indefinido órgão regulador. Seus inimigos, contudo, encontraram um ponto mais frágil, que se situa fora dele: o discurso de seus defensores. É que, de fato, muitos deles sonham com a Censura do Bem.

 

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