Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Crise de ‘oferta política’ poderá mexer com
a demanda e assim se tornar um dos eixos da disputa eleitoral nos próximos anos
Um dos maiores fenômenos político da atual
conjuntura é o declínio político de Jair Bolsonaro e de seu clã. Todo o sistema
político já precificou que o ex-presidente vai se tornar inelegível. Pior do
que isso: agora está cada vez mais evidente que novos fatos e escândalos sobre
seu governo vão aparecer nos próximos meses. Por esta razão, aumentaram, e
muito, as chances de ele ser preso. O último passo dessa decadência é que
parcela relevante de sua popularidade será corroída até 2026. Essa crise de
“oferta política” poderá mexer com a demanda. Eis aí um dos eixos da disputa
eleitoral nos próximos anos.
O processo que tende a gerar uma decadência
paulatina da marca Bolsonaro se deve a quatro fatores: a crença num modelo de
governo de impunidade eterna organizado por gente autoritária, inexperiente e
arrivista; a perda da eleição combinada com o fracasso do golpe; a forma como tratou
os “inimigos” gerou um sentimento de revanche; e, por fim, os órgãos de
controle institucional, especialmente do sistema de justiça, precisam recuperar
a legitimidade de seu poder depois de sobreviverem às investidas golpistas do
bolsonarismo.
Bolsonaro montou um modelo de governo que
apostou na impunidade eterna. Basta lembrar que quando eram cobrados pela mídia
ou pela opinião pública de algum ato, os líderes do bolsonarismo reagiam com
uma soberba de quem imaginava não ter o dever de ser accountable. No fundo,
sentiam-se acima das regras democráticas de igualdade perante a lei. O caso da
tentativa de roubo das joias é exemplar: ali não houve nenhum pudor na busca de
apropriação de valioso bem público. Parecia comportamento de milícia da zona
oeste do Rio de Janeiro.
Seguiram essa trilha porque imaginaram que controlando todos os principais órgãos de controle, como quase conseguiram fazer por quatro anos, incluindo a proposição de sigilos por 100 anos, nada apareceria depois. Mas todos os tipos de golpismos - contra a democracia, o erário público e a população - deixaram rastros. Em boa medida isso se deveu ao fato de que as várias pessoas que participaram desses processos escusos não compunham um grupo treinado longamente para o exercício do poder. Queriam se comportar como a máfia, mas muitos têm agora a dificuldade de arcar com os altos custos de ser mafioso.
A aposta na impunidade eterna se ancorou,
ainda, na hipótese de que Bolsonaro não perderia o poder presidencial de
maneira alguma. Ganharia no voto ou na marra. Aqui entra o segundo fator da
decadência: fracassaram estes dois planos políticos. Desde a aprovação da
reeleição, foi o primeiro incumbente que participou do pleito a ser derrotado.
E isso aconteceu mesmo tendo ampliado a intervenção econômica, política e
administrativa do governo federal como “nunca antes neste país”. O apoio maciço
de uma máquina política poderosíssima gerou um crescimento das intenções de
voto de quase 15 pontos percentuais de agosto até o fim do primeiro turno. Mas
tamanha avalanche não bastou.
A possibilidade de derrota sempre esteve na
cabeça do bolsonarismo. Por isso, tinham um plano B: se não der pelo voto, vai
pelo golpe. Nos próximos meses vamos conhecer mais detalhes do golpismo, porque
estamos num movimento bola de neve, no qual a cada novo episódio, mais coisas
aparecem - e essa novela terá ainda muitos capítulos e personagens novos.
Só que o golpe fracassou. Em parte porque a
organização golpista era formada por despreparados, um exército de Brancaleone.
Ademais, houve resistências, de instituições e da sociedade civil, além da
expressão popular do voto, o que tornou muito difícil ir contra um pouco mais
da metade do país. Como corolário da explicação do fracasso, está a pressão
internacional, inversa ao que ocorrera no golpe de 1964 - e não por acaso há
chances de Bolsonaro ser condenado num tribunal internacional.
De todo modo, o que mais importa é que
Bolsonaro perdeu a eleição e não conseguiu dar o golpe, e a saída do poder
dificultaria manter a aposta na impunidade eterna. Se a mudança de governo tem
geralmente o potencial de ser uma dor de cabeça para o governante anterior,
neste caso essa possibilidade era bem maior. Isso porque os bolsonaristas
criaram uma legião muito grande de inimigos, que foram tratados ferozmente
durante quatro anos.
O terceiro fator que explica a derrocada
atual de Bolsonaro e seu clã está no modo como lidou com seus adversários, os
quais, aliás, foram classificados e tratados como inimigos, para os quais não
haveria espaço de diálogo, pena ou dó, bem ao estilo da política de corte
extremista autoritária. O problema é que a roda da história girou para o lado
contrário do bolsonarismo e uma lista grande de pessoas e organizações não vai
esquecer o que aconteceu no governo passado.
Não estou me referindo aqui apenas ao PT e
ao lulismo, machucados não somente pela disputa eleitoral, mas também pela
tentativa de golpe logo nos primeiros dias de governo. É muito maior o número
de grupos que querem ter a alma lavada contra as perseguições e impropérios
cometidos pelos bolsonaristas. Pobres das periferias urbanas, os atores da
educação, a mídia, artistas, movimentos sociais e os milhões de pessoas que
perderam seus entes queridos por conta da condução criminosa da política de
saúde durante a pandemia da covid-19 constituem uma parte dessa lista que clama
por justiça contra o bolsonarismo.
É por essa razão que os sábios da política,
bem ao estilo de Tancredo Neves, diriam que não se pode lutar contra muita
gente ao mesmo tempo e que sempre é preciso ter um espaço para a conversa com
grupos que pensam diferente. Não se trata apenas de uma visão normativa da
democracia, embora também o seja. Trata-se de um manual básico de sobrevivência
política.
Um amplo sentimento contra o autoritarismo
dos anos bolsonaristas, no entanto, não seria capaz de comandar sozinho um
processo tão amplo de derrocada política. Daí aparece a última explicação para
o que deve levar a um enorme enfraquecimento de Bolsonaro nos próximos anos.
Havia um plano do governo anterior para controlar por completo os órgãos de
controle e o sistema de justiça. Em boa parte, essa estratégia deu certo,
porém, ela gerou uma enorme animosidade com grande parte dos operadores do
direito, particularmente do STF e do TSE. É impossível esquecer as frases de
Bolsonaro contra a maior parte dos ministros da Corte, ao que se soma uma
insatisfação mais difusa, todavia bem ampla, das burocracias da Polícia
Federal, da Receita Federal, do Ministério Público Federal e da Controladoria
Geral da União.
Assim, o que se tem é um governo que deixou
muitos rastros e marcas de malfeitos contra a democracia e a lisura moral, numa
situação atípica de mudança de governo iniciada pela tentativa de um golpe de
Estado, com um enorme sentimento de injustiça de vários grupos contra os anos
de governo bolsonarista, o que se soma, finalmente, com investigadores com grande
fome de investigação e magistrados querendo punir quem propagou o autoritarismo
ou outras formas de corrupção contra a administração pública.
Em tal cenário, haverá poucas chances de o
processo de punição e decadência de Bolsonaro e seu clã terminar por aqui. O
declínio político vai só se aprofundar, até porque mesmo muitos de seus
eleitores não ficarão até o fim com ele, pelo menos enquanto a conjuntura
estiver muito próxima dos escândalos e da provável prisão. Vale lembrar que,
guardadas as proporções, o PT também sofreu muito entre 2016 e 2020, e só teve
uma redenção na eleição de Lula de 2022, embora o novo presidente não tenha
chegado ao poder com a mesma força que nos seus dois outros governos. Em
resumo, crises de reputação tendem, com o passar do tempo e a exposição
midiática, a chegar até uma parte dos antigos eleitores.
A oferta política centrada em Bolsonaro, ou
em sua família, deve virar tóxica nos próximos anos, atingindo inclusive a
ex-primeira-dama, pois sua participação no governo anterior também deixou
rastros - e Carlos Bolsonaro e seus irmãos não vão deixar que os eleitores se
esqueçam disso, porque, psicanaliticamente, não querem que o pai seja
substituído pela madrasta. Se esse fenômeno se consolidar, produz-se uma
situação paradoxal: a demanda por valores e práticas defendidas pelo
bolsonarismo tende a ser forte no curto prazo, contudo, estar próximo do clã
tenderá a ficar cada vez mais perigoso quanto mais o tempo passar.
Construir uma proposta para ganhar a
eleição nacional no Brasil é um projeto que demanda anos de preparação, com
chances reais para poucos candidatos. Por isso, estar mais próximo de políticos
ou partidos com alto impacto tóxico pode significar a impossibilidade de obter
o apoio da maioria do eleitorado. Quem ficar muito colado à família Bolsonaro,
no fundo, tem poucas chances no pleito presidencial de 2026. Mas, no curto
prazo, só bolsonarismo e lulismo são relevantes em termos de votos nacionais.
Algum grupo de direita ou centro-direita terá coragem de romper radicalmente
com Bolsonaro para montar uma nova alternativa política ao Palácio do Planalto?
Tal rompimento, ademais, teria de ocorrer logo, pois realizar essa mudança às
vésperas da disputa presidencial pode ser muito tarde ou parecer artificial.
Está aqui a grande incógnita política daqueles que pretendem substituir o
bolsonarismo.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
A máquina governamental comprou quase 20% dos eleitores que votariam em Lula.
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