O Estado de S. Paulo
As chances de avançar na mediação da guerra
na Ucrânia não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar
o caminho
Nos últimos anos de minha passagem pelo
Congresso Nacional, percebi a crescente importância da política externa no
Brasil pelo número grande de estudantes que vinham acompanhar as sessões da
Comissão de Relações Exteriores. O Brasil se internacionalizava cada vez mais e
o interesse dos jovens abarcava também novas chances no mercado de trabalho.
O governo que se instalou em 2023 talvez
seja o mais voltado para uma política externa, desde o início da
redemocratização. Isso também pode ser um reflexo dos novos tempos.
Dois importantes fundamentos de nossa
inserção no mundo estão sendo enfatizados: a proteção dos recursos naturais,
incluindo o desenvolvimento sustentável da Amazônia, e a luta pela paz mundial.
A política de meio ambiente foi esboçada pelo presidente Lula no seu discurso em Sharm elSheikh, no Egito. Foi uma espécie de passaporte para a volta do Brasil como protagonista no cenário internacional. Depende ainda de realização prática, mas as intenções foram claras.
O presidente Lula decidiu levar adiante
nossa tradição de luta pela paz. No passado recente, já tivemos um papel
importante mediando conflitos entre Equador e Peru e contribuindo, em 1988,
para resolver uma disputa de quase dois séculos.
Mas agora, ancorado na nossa tradição
diplomática, Lula decidiu elevar o sarrafo de nossa capacidade mediadora,
tratando de um conflito na Europa, a guerra na Ucrânia, que envolve, de um
lado, os principais países ocidentais e, de outro, a Rússia, que, além de
europeia, tem raízes na Ásia. De um ponto de vista biográfico, é uma escolha
inteligente. Mesmo em caso de fracasso, Lula passará à História como aquele que
tentou, sem êxito, promover a paz numa Ucrânia devastada pela guerra.
Há muitos caminhos para quem se interessa
em fortalecer o papel do Brasil no mundo. É possível criticar a iniciativa de
Lula, da mesma forma que é possível aplaudi-la incondicionalmente. No entanto,
há uma espécie de trilha entre esses dois caminhos que significa aceitar o
grande desafio de mediar uma guerra desta proporção e, simultaneamente,
contribuir para que a mediação seja muito bem feita, isto é, colocar o sarrafo
mais alto ainda. Alguns erros foram cometidos no caminho. Mas ninguém pode
afirmar que a mediação esteja irremediavelmente perdida.
A primeira dificuldade surgiu quando Lula
afirmou a um jornal francês que a Ucrânia poderia abrir mão da Crimeia. Não se
trata de uma tese estapafúrdia. Intelectuais como Edgar Morin a defendem
abertamente. Morin, aos 101 anos de idade, acaba de lançar um livro sobre a
guerra propondo que a Ucrânia abra mão da Crimeia, onde a população russa é
maioria, seguida dos tártaros e ucranianos. O escritor francês vai além,
propondo que a Ucrânia abra mão também de Donbass, região industrializada por
Stalin, e se integre na Otan.
A diferença entre Edgar Morin e Lula é
muito simples: um é potencial mediador, o outro, apenas um intelectual.
As declarações na China condenando a ajuda
militar do Ocidente à Ucrânia também não foram bem recebidas, a ponto de muitos
observadores afirmarem que Lula estava próximo de Vladimir Putin.
E, finalmente, na reunião do Grupo dos 7,
em Hiroshima, Lula e Zelensky se desencontraram, o que torna ainda mais difícil
a mediação.
Não se trata, aqui, de determinar a culpa a
partir de relatos diferentes na imprensa. O importante é que o encontro tivesse
acontecido. Outros líderes, inclusive mais próximos da Rússia, como o indiano
Narendra Modi, se encontraram com Zelensky. O argumento de Lula de que o a
reunião dos 7 não tratava de guerra não se sustenta: um potencial mediador
precisa aproveitar todas as oportunidades para realizar sua tarefa.
As chances de avançar na mediação da guerra
não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar o caminho
e não se contentar apenas com a intenção mediadora, mas com a eficácia da
iniciativa.
Em primeiro lugar, seria importante que
Lula falasse desses temas a partir de um texto, nunca improvisando. Não há nada
demais nisso, apenas um reconhecimento de que relações internacionais são
delicadas e demandam uma cuidadosa escolha das palavras.
Em segundo lugar, seria importante que o
governo brasileiro mostrasse alguma empatia com a Ucrânia, além, naturalmente,
de condenar a invasão armada. Uma das hipóteses é receber para uma audiência os
representantes da colônia ucraniana no Brasil. Existe uma falsa impressão de
que os ucranianos são de direita e que a resistência é formada por fascistas. O
presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira, Vitório Sorotiuk,
lutou contra a ditadura, se asilou no Chile e na Europa e mantém um bom nível
de informações sobre o que se passa por lá.
É verdade que o ex-ministro Celso Amorim
esteve na Ucrânia como enviado especial, mas, no pé em que as coisas estão,
seria necessário reencontrar a aura de neutralidade.
O governo e seus apoiadores podem achar um
pouco audacioso fazer sugestões não tendo nenhum tipo de vínculo ou de relação
com eles. O problema central é que é muito difícil de se desvincular da
condição de brasileiro e tratar nossa política externa como se fosse algo
desenvolvido em outro país. Nada demais esperar dela que funcione na prática.
É isto aí.
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