O Estado de S. Paulo
Kilicdaroglu é a esperança dos turcos que
anseiam por um governo minimamente normal
Na primavera, a vida noturna da Rua Istklal
e a movida cultural do bairro de Kadikoy atingem seu pico. A maioria dos
moradores de Istambul, metrópole vibrante encravada entre a Europa e a Ásia,
deverá votar amanhã contra Recep Tayyip Erdogan nas eleições presidenciais
turcas. “Quem perde Istambul perde a Turquia”, disse certa vez Erdogan. Talvez,
no entanto, ele esteja errado – infelizmente.
Apesar dos indicadores catastróficos – mais de 80% de inflação anual, derretimento da lira turca e negligência do governo num terremoto que deixou 50 mil mortos –, a vitória do oposicionista Kemal Kilicdaroglu não é certa. As pesquisas preveem equilíbrio no segundo turno entre ambos, na eleição que a revista britânica The Economist define como “a mais importante do ano”, pela oportunidade de apear um governante despótico de uma das mais populosas democracias do planeta.
O que explica o equilíbrio? “Parte da
população da Turquia ainda acredita no mito do governante forte e autoritário”,
diz o sociólogo português José Duarte Ribeiro, que mora em Ancara e trabalha
como pesquisador para a Universidade de Lisboa. “Nas áreas mais pobres, mesmo
as atingidas pelo terremoto, Erdogan ainda lidera.” Duarte Ribeiro é o
entrevistado no minipodcast da semana.
“A Turquia tem vários jornalistas presos,
além de artistas e humoristas, e é um dos países com o maior índice de feminicídios
e crimes passionais”, diz o sociólogo. Sob Erdogan, a Turquia saiu da Convenção
de Istambul, tratado que prevê a proteção dos direitos das mulheres e o combate
à violência doméstica. Uma lei autoritária prevê a prisão dos que criticam o
presidente de forma que ele considere “ofensiva”.
Erdogan destruiu as instituições
democráticas do país e extinguiu o cargo de primeiro-ministro para concentrar
mais poder na presidência. Kilicdaroglu promete fortalecer o parlamento,
libertar os presos políticos e restabelecer os direitos civis.
O candidato da oposição é frequentemente
comparado a Joe Biden. É um político de 74 anos, bem votado entre a elite
liberal de Istambul e Ancara e suave no trato – a não ser quando sobe o tom por
razões pragmáticas, como fez na semana passada ao falar contra os imigrantes de
olho no voto dos nacionalistas. A bravata repercutiu mal na imprensa ocidental.
Foi um arreganho imperdoável, mas, mesmo
assim, Kilicdaroglu é a esperança dos turcos que anseiam por um governo
minimamente normal. Seus comícios são embalados por uma canção do popstar
Levent Yuksel cujo refrão diz: “A primavera voltará”. Se ele ganhar, os bares
da Istklal e os cafés de Kadikoy ficarão ainda mais cheios.
*Escritor, pesquisador do Observatório da Qualidade
da Democracia na Universidade de Lisboa e professor da Faap
E tomara que ganhe.
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