Correio Braziliense
Ex-chefe da força-tarefa de Curitiba, algoz do
presidente Lula, que ousou estender suas investigações contra a corrupção aos
tribunais superiores, acabou defenestrado pelo TSE
Gravado em 1968, o ano da Passeata dos 100
Mil e do Ato Institucional nº 5, a letra da música Cipó de Aroeira, de Geraldo
Vandré, que empresta seus versos à coluna, fez muito sucesso à época. Era uma
alusão à Revolta da Chibata (1910) e ao passado escravagista da Colônia e do
Império, cujos castigos físicos impostos aos escravos indisciplinados e
rebeldes continuaram praticados após a abolição, pela Marinha de Guerra:
“Marinheiro, marinheiro/ Quero ver você no mar/ Eu também sou marinheiro/ Eu
também sei governar/ Madeira de dar em doido/ Vai descer até quebrar/ É a volta
do cipó de aroeira/ No lombo de quem mandou dar/ É a volta do cipó de aroeira/
No lombo de quem mandou dar”.
Também foi uma espécie de prenúncio da opção pela luta armada que uma parte da oposição ao regime militar viria a adotar, sob a liderança principal do comunista Carlos Marighella. Havia um evidente voluntarismo na ideia de que seria possível combater o regime militar recorrendo à força das armas, o que resultou no fracasso dos grupos guerrilheiros urbanos e rurais constituídos sob a inspiração, principalmente, da Revolução Cubana. Nunca houve a volta do cipó de aroeira. O regime militar seria derrotado nos marcos de suas próprias regras eleitorais.
Os militares se retiraram do poder em
ordem. A transição à democracia foi longa e pactuada, os agentes dos órgãos de
repressão foram poupados de punições por envolvimento em sequestros, torturas e
assassinatos. Por meios pacíficos, o Brasil reconquistou a democracia. Agora,
37 anos após a vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral, os militares
novamente se retiraram em ordem do poder, ao frustrar a tentativa de golpe da
extrema direita de 8 de janeiro passado. A eleição de Jair Bolsonaro os
trouxera de volta ao governo, em 2018, pela força das urnas, fato inédito desde
a eleição do marechal Eurico Gaspar Dutra, em 1945.
Magistratura
Os quatro anos de mandato de Bolsonaro
foram sombrios. Fora eleito no rastro da Operação Lava-Jato, liderada pelo juiz
federal Sergio Moro, de Curitiba, e pelo procurador da República Deltan
Dallagnol, entre outros. Nesse ínterim, o Brasil flertou com o autoritarismo,
sob a liderança de um ex-capitão que fez carreira no baixo clero da Câmara.
Bolsonaro militarizou o governo federal, ao destinar cerca de oito mil cargos
aos seus antigos companheiros de caserna, entre os quais, os generais amigos
que ocupavam posições-chave no Palácio do Planalto. Dois fatores contribuíram
para sua eleição: a cassação dos direitos políticos do líder petista Luiz
Inácio Lula da Silva, que passou mais de 500 dias preso em Curitiba, e a
desmoralização da política e de seus partidos pela Operação Lava-Jato.
Bolsonaro operou para cooptar os militares,
desmoralizar a magistratura, subjugar os diplomatas e escantear a Igreja
Católica, os redutos tradicionais da elite liberal do país. As ideias de
Oliveira Viana, ideólogo do Estado Novo e autor de Populações Meridionais do
Brasil, pareciam saltar das páginas empoeiradas de sua obra para o cotidiano da
política atual. No lugar do idealismo constitucional de Rui Barbosa, que
inspira nossa República, um projeto autoritário nos moldes de Francisco Campos,
o jurista da Constituição de 1937, mais conhecida como “Polaca”.
Entretanto, como diria Antônio Carlos
Brasileiro de Almeida Jobim, o compositor Tom Jobim, o Brasil não é para
principiantes. Que ironia, a onda reacionária que se apropriou da bandeira da
ética e promoveu um tsunami na política brasileira esbarrou no Supremo Tribunal
Federal (STF), um dos pilares do Estado nacional, enraizado historicamente
desde o Império, que até recentemente parecia ser o principal instrumento de
criminalização da atividade política no Brasil, com o apoio da mídia e da
opinião pública. Como após o Período Regencial (1831-1840), com suas rebeliões
que colocavam em risco a integridade nacional, a magistratura federal teve um
papel decisivo na defesa da ordem, contra uma extrema direita golpista e
reacionária, liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
A cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), eleito no ano passado, ocorre nesse contexto histórico. O ex-chefe da força-tarefa de Curitiba, algoz do presidente Lula, que ousou estender suas investigações contra a corrupção aos tribunais superiores, foi defenestrado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na terça-feira, por unanimidade, após julgamento de pedido de impugnação de sua candidatura. Eleito com mais de 345 mil votos, o mais votado do Paraná, “Dallagnol antecipou sua exoneração em fraude à lei. Ele se utilizou de subterfúgios para se esquivar de PADs ou outros casos envolvendo suposta improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos. Tudo isso porque a gravidade dos fatos poderia levá-lo à demissão”, resumiu o relator do processo no TSE, ministro Benedito Gonçalves, ao defender a cassação. Quem maneja o cipó de aroeira é a alta magistratura.
A lei do carma é infalível.
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