Correio Braziliense
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, disputa
entre os Estados Unidos e a China ameaça transformar a guerra comercial entre
os dois países numa nova “guerra fria”
O romance Guerra e Paz (Companhia das
Letras), de Liev Tolstói, foi publicado inicialmente como folhetim, na revista
Russkii Vestnik, entre 1865 e 1869. A novela retrata a Rússia no começo do
século 19, particularmente no período da invasão de Napoleão Bonaparte, que
chegou a ocupar Moscou por um mês e meio. O realismo social e a complexidade
psicológica fizeram da obra uma das mais importantes da literatura universal. A
maior crítica a Tolstói é ao seu fatalismo histórico, que norteia a trajetória
de seus protagonistas, como se não houvesse livre-arbítrio.
Na época, além de quebrar todas as regras literárias, que Tolstói havia respeitado em Anna Karenina (1878), o romance também foi mal-recebido por parte dos veteranos da Guerra de 1812, contra Napoleão Bonaparte, porque desconstrói a narrativa heróica tradicional ao descrever o dia a dia dos soldados. Com o tempo, porém, o romance passou a ser reconhecido por sua qualidade literária e também histórica. É considerado a melhor reconstituição daquele conflito, no qual Napoleão acabou derrotado pelo velho e ardiloso marechal Mikhail Kutuzov.
Vem dessa derrota de Napoleão o mito da
invencibilidade do Exército russo, graças ao “general inverno”, consolidado com
a vitória do Exército Vermelho contra a Alemanha, na Segunda Guerra Mundial.
Mas o mito não é verdadeiro. Mesmo na Batalha de Borodino, decisiva para a
derrota da campanha napoleônica, os russos foram derrotados, perdendo metade
dos seus soldados. O problema de Napoleão foi que não houve rendição, ao
contrário do que ocorrera em outras campanhas, além do fato de que perdera um
terço de seus soldados no confronto. Além de salvar o Exército, ao evacuar Moscou,
Kutuzov evitou outro confronto com Napoleão, preferiu adotar a tática de
guerrilhas e fustigar a retaguarda do Exército francês, na sua retirada
dramática pela neve.
Entretanto, mais tarde, a Rússia perderia a
guerra com o Japão, entre 1904 e 1905, ao disputar os territórios da Manchuria,
principalmente Port Arthur, na península de Liaodong. Na Batalha de Tsushima, a
frota russa foi arrasada pela Marinha japonesa, perdendo 24 navios. O episódio
obrigou o czar Nicolau II a negociar a paz. Sua derrota foi uma das causas das
revoluções de 1905 e 1917. Foi tão traumática que, na Segunda Guerra Mundial, o
líder soviético Youssef Stálin temia muito mais uma invasão japonesa do que o
ataque alemão. Por isso, expurgou veteranos generais e acabou foi surpreendido
por Hittler, com quem havia feito um acordo de paz, apesar das advertências dos
serviços de espionagem.
Guerra da Ucrânia
Os russos não são os mesmos soldados fora
de seu território, isso ficou comprovado na Guerra de Inverno, contra a
Finlândia (1937-1940), quando não conseguiram ocupar completamente o país, e na
invasão do Afeganistão, que durou 10 anos e acabou perdida de forma humilhante
para os mujajidin, os rebeldes do Talibã. Na Ucrânia, a vida nunca foi fácil
para os russos. Conquistada por Pedro o Grande, que derrotou Carlos XII da
Suécia na batalha de Poltava, em 1709, a Ucrânia foi dividida pela Polônia e a
Austria, até a Revolução Russa de 1917, quando se tornou uma república
soviética. Mesmo assim, houve uma guerra civil entre cossacos aliados dos
bolcheviques e o Exército “branco”, sendo uma parte do território anexado pela
Polônia nas negociações de paz com Lenin, o líder soviético.
Na Segunda Guerra Mundial, devido ao trauma
da “Grande Fome”(Holomnodor), causada pelas coletivizações forçadas de Stálin,
uma parte dos ucranianos apoiou o Exército alemão. A Ucrânia plenamente
reintegrada à antiga União Soviética depois da guerra, quando incorporou também
a Crimeia. Com o colapso do modelo soviético, conquistou inédita e plena
independência. Agora, teve seu território invadido perla Rússia, que corre
sério risco de uma nova derrota catastrófica. Os Estados Unidos, o Reino Unido
e a União Europeia, inclusive França e Alemanha, não estão dispostos a aceitar
que uma parte do território ucraniano seja incorporado à Rússia, como já
aconteceu em outros momentos da história.
Na verdade, a guerra da Ucrânia se
transformou numa guerra por procuração entre a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) e a Rússia, na qual Putin está moralmente derrotados na
opinião pública ocidental e, agora, corre o risco de sofrer uma derrota militar
propriamente dita. O Ocidente está disposto a escalar a guerra até a retirada
total das tropas russas, com a transferência de armamentos mais modernos e com
potencial ofensivo muito maior para a Ucrânia, como os aviões de caça F-1(EUA).
É nesse contexto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da
reunião do G7 (os sete países mais industrializado do mundo), que termina hoje,
em Hiroshima, no Japão.
O presidente da Ucrânia, Volodymyr
Zelensky, que se transformou no líder político mais popular do Ocidente, chegou
de surpresa à reunião e deve ter um encontro biliteral com Lula. O Brasil está
sendo pressionado pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e outros
líderes europeus a assumir uma posição claramente favorável à Ucrânia na guerra
com a Rússia. A Índia, que é aliada dos Estados Unidos contra China, também. Os
dois países integram os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul),
um pacto entre as principais economias emergentes. A disputa entre os Estados
Unidos e a China ameaça transformar a guerra comercial entre os dois países
numa nova “guerra fria”.
Ontem, na reunião de cúpula do G-7, Lula
criticou a formação de “blocos antagônicos” no mundo. Defendeu reformas e a
inclusão de novos membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU, para
“recuperar a eficácia, autoridade política e moral para lidar com os conflitos
e dilemas no século 21”. O G7 engloba EUA, Canadá, França, Alemanha, Itália e
Japão. Austrália, Comores, Ilhas Cook, Índia, Indonésia, Coreia do Sul e Vietnã
também participaram da reunião. Embora a neutralidade do Brasil seja uma
tradição diplomática, na questão da Ucrânia essa posição isola Lula no Ocidente
e internamente.
Carácoles!
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