Correio Braziliense
A derrota de quarta-feira e as que virão nas
próximas medidas provisórias revelam a desarticulação governista na Câmara e,
sobretudo, a insatisfação de Lira. O conceito de formação da base deu errado
Na quarta-feira à tarde, durante uma
conversa com jornalistas no cafezinho da Câmara, o ex-senador petista Paulo
Rocha (PA) sentia o cheiro de animal ferido: “não estou gostando do que estou
sentindo por aqui, o Alexandre Padilha (ministro das Relações Institucionais)
precisa frequentar mais o Congresso”.
Ontem, depois da derrota do governo na
Câmara, que derrubou o decreto que alterava o marco regulatório do saneamento,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva praticamente repetiu as mesmas palavras,
ao discursar na reunião do Conselhão — integrado por empresários, líderes
sindicais e outros representantes da sociedade.
A formação do fórum foi uma ourivesaria de
Padilha, mas o ministro deixou desguarnecida a própria retaguarda. Foi
advertido pelo presidente da República de que deveria mostrar a mesma
competência no Congresso.
Relator do substitutivo que derrubou o
marco do saneamento, o líder do Cidadania, Alex Manente (SP), que comanda uma
bancada de apenas quatro deputados, articulou a manobra que pegou de surpresa o
líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), que ficou vendido na hora
da votação.
No primeiro teste importante para o
Executivo, o governo teve apenas 136 votos, num universo de 513 deputados.
Votaram contra o Palácio do Planalto 295 deputados, ou seja, número suficiente
para inviabilizar qualquer proposta do governo. As bancadas do MDB, do PSD, do
União Brasil, e até do PSB, que têm nove ministros na Esplanada, votaram
maciçamente contra o governo.
Desde quando o decreto foi publicado, o mal-estar
na Câmara era grande. Por dois motivos: primeiro, o novo marco sanitário foi
fruto de muita discussão e negociação; segundo, ao fortalecer as antigas
companhias estaduais de saneamento, o decreto estava na contramão do processo
de privatização do setor.
“Estamos sustando a contratação de estatais em diversos estados sem licitação e a possibilidade de contar situações irregulares como parte da capacidade econômica”, argumentou o relator.
O assunto mexe diretamente com os
interesses e alianças dos deputados, porque as privatizações estão se dando com
o empoderamento de municípios grandes e médios, que formam consórcios locais,
numa complexa negociação que envolve as antigas estatais — algumas das quais já
privatizadas —, as novas empresas privadas de saneamento e as prefeituras,
porque a titularidade do saneamento é municipal, embora o fornecimento da água
seja estadual.
Na prática, o novo marco do saneamento
organizou um setor privado bastante capilarizado, com poder igual ou superior
ao das empresas de transportes coletivos e de coleta de resíduos sólidos na
política local.
Mais recados
Representante da classe média de São
Bernardo, onde tem sua principal base eleitoral, Manente é um parlamentar
experiente, acostumado aos embates com o PT desde os tempos de vereador em sua
cidade. Entretanto, jamais teria êxito na votação, que entrou em pauta de
última hora, sem combinar com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que
o governo seria derrotado.
Para uma oposição na ofensiva, que
comemorava o adiamento da votação da chamada Lei das Fake News, e uma base
parlamentar insatisfeita, a derrubada do decreto era um prato feito, uma
derrota anunciada. O governo metera a mão numa cumbuca que não mais lhe
pertencia.
Há duas outras matérias nas quais o Palácio
do Planalto tem limitadas possibilidades de vitória: o retorno do Conselho de
Controle de Atividades Financeiras (Coaf) à estrutura do Ministério da Fazenda
e a extinção da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), ligada ao Ministério da
Saúde.
No primeiro caso, será um recado para o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de apoio ao presidente do Banco Central
(BC), Roberto Campos Neto, que ontem foi novamente criticado por Lula. No
segundo, o alvo é ministra da Saúde, Nísia Trindade, porque a instituição atende
1.500 comunidades — entre as quais as indígenas —, porém sempre foi um feudo da
Câmara, porque mexe com interesses políticos da base.
A derrota de quarta-feira e as que virão
nas próximas medidas provisórias revelam a desarticulação da base governista na
Câmara e, sobretudo, a insatisfação de Lira. O conceito da articulação da base
do governo, revelado na formação do blocão MDB-PSD-Republicanos-Podemos-PSC,
era conseguir uma maioria simples sem depender do presidente da Câmara. Deu
errado.
A atuação do ministro da Casa Civil, Rui
Costa, na Esplanada, também enfraqueceu os laços dos ministros e parlamentares
dos partidos aliados. A culpa não é só do ministro Padilha.
Livro – A editora Boitempo lança hoje,
às 19h, em Brasília, na Livraria Circulares (CLN 313, Bloco A, Asa Norte), a
coletânea Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o
país, organizada por Juliana Paula Magalhães e Luiz Felipe Osório.
Tempos nada bons para o governo.
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