Carta Capital
Só os catastrofistas se apavoram, pois
nunca houve crise por endividamento de governos em moeda nacional
Enfim, Alice descobriu o país das mil
maravilhas! Ontem foi declarada a independência do Banco Central, o
Império do Dinheiro, localizado no planeta Plutão. O presidente desse Território
declarou no Comitê de Política Monetária: “Senhores, este é um momento
histórico para todos, a partir de hoje estamos livres das garras, das patas do
Leviatã! A moeda é nossa, fim da ingerência da política no Império do
Dinheiro”.
No livro Denationalisation of Money, Hayek
defende: “A abolição do uso exclusivo em cada território nacional da moeda
emitida pelo Estado e a admissão de moedas emitidas em pé de igualdade por
outros governos… Ao mesmo tempo, é preciso eliminar o monopólio dos governos na
oferta de moeda, para permitir o abastecimento do público com a moeda de sua
preferência”.
No dia seguinte, os mercados em todo o sistema planetário abriram em euforia, Bolsas para cima, ouro para baixo, juros em queda. Os preços das ações das instituições financeiras foram ao êxtase, afinal o novo país proclamou o fim da regulação do sistema monetário! Alguns economistas austríacos saudosistas foram às lágrimas, o sonho, a utopia de Von Mises e Hayek, o mercado interbancário, pelo balanceamento das forças de demanda e oferta por moeda privada, define diariamente o preço do dinheiro, a taxa de juros, o Banco Central só referendará!
No fim de seu pronunciamento, o novo
presidente arrematou: a partir de amanhã, será cobrado um Imposto sobre
Operações Financeiras (IOF), que vai financiar a construção de um muro entre a
política monetária e a fiscal; a massa entrou no delírio, nirvana! Fora, Estado
intrometido!
Depois de quase um século de conflitos,
ideológicos, doutrinários, metodológicos e linguísticos, a separação total,
entre o lado real e monetário da economia! O sonho não acabou, o monetarismo
venceu!
Algum tempo depois, a euforia deu lugar à
melancolia e à depressão. Os agentes econômicos ditos “racionais” voltaram às
velhas práticas, como o escambo e os pagamentos à vista. O sistema financeiro
estava à beira da falência, ninguém tinha a menor ideia de qual taxa de juros
deveria ser cobrada nas operações de crédito. As lojas suspenderam o crédito ao
consumidor. A flutuação diária da taxa de juros do interbancário eles
deixaram no escuro, sem referência. Os templários da ortodoxia econômica
reclamaram, mas isso não é racional!
O mercado, que nas horas de crise é mais
pragmático do que doutrinário, conclamou todos a fazer uma passeata pela volta
da autoridade monetária como regulador da oferta de moeda e, pasmem, pelo
retorno da política monetária. Opere a curva de juros e fixe a referência do
preço do dinheiro, no curto e no longo prazo! Mas alguém lembrou: e o muro?
Afinal, para controlar e fixar a taxa de juros, precisamos de open market e
compromissadas! Sem os títulos públicos garantidos pelo Tesouro, não tem como
fazer. Tesouro Nacional lembra dívida pública, lembra gastos públicos, ou seja,
a volta da gastança. O dilema do prisioneiro!
Nas últimas semanas, esquentou a refrega
sobre a relação dívida/PIB entre
catastrofistas e a turma do “senta-que-o-leão é manso”. Na visão dos
catastrofistas, o risco fiscal está associado a uma trajetória “insustentável”
da dívida pública. Insustentável, porque essa vileza vai mortificar os mais
jovens e os que ainda não vieram à luz com um aumento da carga de impostos ou,
na pior das hipóteses, com um calote devastador na riqueza financeira que frequenta
os balanços de bancos, fundos, gestoras de ativos e seus clientes do dinheirão
e do dinheirinho. Ecoa a pergunta: quem vai pagar a dívida?
“Farialimers”: endividamento excessivo
requer manter Selic e há risco de fuga para o dólar
Não deveria repetir o que foi dito aqui: os
estudos sobre as relações entre crescimento da dívida privada e da dívida
pública, ao longo dos ciclos de expansão-contração das economias capitalistas,
mostram de forma cabal que nas expansões predomina o crescimento do endividamento
privado e nas contrações eleva-se o endividamento público. Quando se acentuam
as desconfianças dos mercados, a tigrada corre para os títulos públicos,
avaliados como ativos seguros de última instância.
Em minhas peregrinações pelos labirintos da
história do capitalismo, não encontrei sequer um fiapo de memória denunciando
uma crise monetário-financeira provocada pelo endividamento “excessivo” dos
governos em moeda nacional. As crises de endividamento público estão,
invariavelmente, associadas à tomada de empréstimos em moeda estrangeira. Esta
foi a etiologia da crise fiscal e monetária dos emergentes nos anos 80 do
século passado, entre estes o Brasil. A crise deflagrada no início dos anos 80
produziu efeitos devastadores sobre as finanças públicas e erodiu a soberania
monetária dos países atingidos ao suscitar uma fuga sistemática das moedas
nacionais.
Ao alegar endividamento excessivo do Estado
brasileiro e a necessidade de manter a taxa Selic, os “farialimers” ameaçam com
a fuga para o dólar e, implicitamente, sinalizam com uma dinâmica inflacionária
semelhante à observada, e sofrida, nos anos 80. Tenho a ligeira impressão de
que as situações divergem. E divergem porque, na crise da dívida, as reservas
brasileiras contavam apenas com os brincos de dona Dulce Figueiredo, a esposa
do presidente da República, além das “polonetas”, títulos podres dos países
socialistas. Hoje, nossas reservas são parrudas e devem ser preservadas para
assegurar o exercício da soberania monetária.
Ao investigar a evolução das instituições
monetário-financeiras do capitalismo, um certo Karl Marx asseverou que “o
crédito público se converte no credo do capital”. E ao surgir o endividamento
do Estado, o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, cede
seu lugar para a falta de fé na dívida pública.
A dívida pública torna-se uma das alavancas
mais poderosas da acumulação. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde
força criadora ao dinheiro estéril e o transforma, assim, em capital, sem que,
para isso, tenha necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis da
aplicação industrial e mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não
lhe dão nada, pois a soma emprestada se converte em títulos da dívida,
facilmente transferíveis, que, em suas mãos, continuam a funcionar como se
fossem a mesma soma de dinheiro vivo. Porém, ainda sem levarmos em conta a
classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos
financistas que desempenham o papel de intermediários entre o governo e a
nação, e abstraindo também a classe dos coletores de impostos, comerciantes e
fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo estatal
serve como capital caído do céu, a dívida pública impulsionou as sociedades por
ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa
palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia.
*Ex-trader e professor de Economia e Mercado de Capitais do Instituto J&F.
Lendo e tentando aprender.
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