Carta Capital
Seria uma insanidade substituir os
preceitos e a força da lei pela presunção de bondade de um grupo ou de
indivíduos
“Nós
defendemos o armamento para o cidadão de bem, porque entendemos que a arma de
fogo, além de uma segurança pessoal para as a famílias, ela também é a
segurança para a nossa soberania nacional e a garantia de que a nossa
democracia será preservada”. Assim falou Bolsonaro no
dia 17 de maio de 2022.
“Cidadão de bem” é a expressão que denuncia as desavenças de Bolsonaro com os princípios que regem a convivência social ao abrigo do Estado Moderno. As formações políticas que se consolidaram desde a Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não admitem aos cidadãos invocar a própria santidade, honestidade ou boa consciência para contestar a universalidade da lei ou os procedimentos legais.
Seria uma insanidade, no mundo moderno, substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos. Essa é a questão envolvida nos trancos e barrancos que acompanham a aprovação do Projeto de Lei das Fake News.
Não apenas aqui, neste Brasil de tantos
atrasos e tantas ignorâncias, mas no mundo inteiro a crise de legitimação do
Estado vem suscitando “ondas regressivas” de apelo às falsidades da consciência
moralista e hipócrita, em prejuízo da segurança e da liberdade dos cidadãos.
Nessa toada, a liberdade de
expressão tem sido invocada para a prática de agressões e
ameaças como aquelas que infestam as redes sociais e passam impunes. As mais
preocupantes são as manifestações que carregam desdouros aos direitos e
liberdades “dos outros”. Isso quando não menosprezam diretamente as
instituições do Estado de Direito que garante os direitos e liberdades de todos
e qualquer cidadão.
As reflexões mais profundas sobre a ética
da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de
desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons
sentimentos, da palavra de honra. Na verdade, os óbices e punições aos crimes
praticados nas plataformas totalitárias não requerem um projeto de lei, mas tão
somente a aplicação rigorosa das leis existentes, salvaguardadas na
Constituição e nos Códigos Penal e Civil.
É oportuno invocar a sabedoria de Thomas
Hobbes: “… cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que o
homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os
inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim
perdurando, esse direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá haver
segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver durante todo
o tempo que a Natureza permitiu que vivesse”.
Hobbes rejeitou a visão do “estado de
natureza” como um passado idílico em que os homens conviviam pacificamente, em
que o homem era naturalmente bom. A convivência pacífica só pode surgir na
sociedade em que o Estado está consolidado, e a sociedade civil está submetida
às leis emanadas do Soberano. Sublinho a palavra leis. O soberano tem o dever
primordial de garantir a segurança de todos os cidadãos contra as ameaças de
violência de uns poucos.
Na Filosofia do Direito, Hegel condena as
queixas e reações contra a involução que pretende impor a moral particularista.
“São não apenas errôneos estes protestos, mas revelam um apego malsão à sua
própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da
moralidade”.
Emile Durkheim ensina que para Rousseau e
Kant, “as únicas formas morais de agir são aquelas que podem se adequar a todos
os homens indiscriminadamente, ou seja, que estão envolvidas na noção de homem
em geral”.
A Modernidade carrega em seu Espírito a
missão de universalizar os direitos e as obrigações enquadrados na formalidade
da lei. Quando o Espírito descuida, acordam os pequenos demônios da opressão,
do particularismo e da submissão dos indivíduos à vontade de outros indivíduos.
Essa é a essência da liberdade dos que se manifestam nas ruas, clamando pelo
fechamento do STF.
A tirania dos cidadãos de bem ensina que o
indivíduo é naturalmente bom, capaz de discernir entre o justo e o injusto, o
certo e o errado. A sociedade e as instituições, ao contrário, são corruptas e
corruptoras. Para essa gente, os compromissos típicos da democracia são
obstáculos para a realização da “verdadeira justiça”, aquela que está, desde o
útero materno, no coração dos homens. As instituições da sociedade, sobretudo o
Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de punição
insuficientemente rigorosos, tornam a Justiça uma farsa, um procedimento
burocrático e ineficaz.
A história, sobretudo a nossa, está aí para
mostrar que nenhum regime despótico deixou de invocar, nos seus momentos
preambulares, as virtudes, excelências e a superioridade de sentimentos dos
“homens que vieram para praticar o bem”.
*Economista e professor
''Os homens de bem'' são um perigo.
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