Folha de S. Paulo
Há riqueza em atualizar obras de arte do
passado, o problema é subjugar a estética à política
A ópera "O Guarani", apresentada neste mês no
Theatro Municipal de São Paulo, gerou polêmica. Com concepção geral de Ailton Krenak,
escritor e líder indígena, a montagem adaptou a obra do maestro Carlos Gomes,
de 1870, para os tempos atuais.
Há enorme riqueza em fusões entre passado e
presente, erudito e popular, e a história da arte moderna comprova isso. O
problema é subjugar a estética à política.
Em uma das cenas de maior lirismo, quando a adolescente portuguesa Ceci canta sua paixão pelo indígena Peri, são exibidas imagens de indígenas acompanhadas de palavras de ordem contra a colonização e a exploração dos povos originários.
Essa junção esvazia completamente o caráter
romântico da cena, fazendo de Ceci uma boba alienada: não há espaço para o
amor, para o indivíduo, quando há opressão social.
Tal mecanismo é observado em ditaduras. Na
URSS, por exemplo, artistas que se recusavam a seguir a cartilha do realismo
socialista —obras que enaltecessem a revolução, a classe operária, e
denunciassem opressão— eram perseguidos. Poemas de amor eram tachados
pejorativamente de arte burguesa.
Não à toa, é comum que o amor romântico
seja o estopim para que personagens se libertem da tirania em livros que tratam
de distopias totalitárias. Se a ordem é que sejamos todos iguais, a paixão nos
diferencia. Assim é em "Admirável Mundo Novo", "Fahrenheit 451" e "1984". Esse último foi inspirado em
"Nós", do escritor russo Eugene Zamiatin, perseguido pelo regime
soviético.
É possível adaptar obras do passado para
tratar de questões sociais do presente, mas é preciso cuidado. Afinal, não se
trata de um panfleto político. Ademais, cria-se um desafio, já que a política é
da seara da razão objetiva, em oposição ao campo das emoções subjetivas da
arte.
Como disse Zamiatin, "Melhorar o
saneamento público é muito bom, posso imaginar um excelente artigo de jornal
sobre tal tópico. Mas acho difícil imaginar uma obra de Tolstói sobre as
condições de saneamento".
Falou!
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