O Globo
Se houvesse um censo para esse tipo de
coisa, provavelmente se constataria um recorde de taças tilintando em Brasília
logo após a
cassação de Deltan Dallagnol. Sem contar as mensagens, ligações e memes
entre autoridades se congratulando por extirpar da política o ex-procurador da
Lava-Jato de Curitiba.
Em meio à celebração, houve quem disputasse
o pioneirismo na luta contra a operação que, segundo seus críticos,
“criminalizou a política” e deu asas ao bolsonarismo. Para os mais ambiciosos,
cassar Dallagnol foi pouco. "Só comemoro mesmo quando expulsar o
Moro", me disse uma parruda autoridade da República.
Por mais insaciável que seja o desejo de vingança, porém, o “sistema” não tem do que reclamar. Nesta semana, mais um passo foi dado contra a “criminalização da política”. Foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados a anistia para todas as irregularidades nas prestações de contas dos partidos sobre o uso do fundo eleitoral.
De compra de toneladas de carne e reforma
de piscina a recibo fraudulento de gráfica, passando pela aquisição de carros
de luxo e aeronaves, todo “pecado” cometido com o dinheiro público será
perdoado caso a emenda constitucional passe no plenário da Câmara. Ficarão
liberadas também as legendas que não cumpriram as cotas para candidaturas de
mulheres e de negros.
Todo o sistema político apoiou — do PT de Lula ao PL de
Bolsonaro. Só PSOL, Rede e
Novo foram contra. Não precisa ser especialista para saber que essa anistia
torna a Justiça Eleitoral inútil, a menos que seja para cassar políticos como
Dallagnol. Ainda assim, até agora não se ouviu no TSE nenhuma objeção.
Também não foi só em Brasília que o sistema
encontrou motivos para celebrar. Na Petrobras,
começou a deslanchar a mudança na política de preços dos combustíveis tão
cobrada por Lula. A companhia informou que abandonará a paridade internacional
para se tornar competitiva — o que na prática quer dizer que
ela buscará uma forma de baixar os preços para ajudar o governo a
controlar artificialmente a inflação.
Nos tempos de Dilma
Rousseff, essa política provocou um rombo de cerca de R$ 120 bilhões na
companhia — o equivalente a quase dois anos de Bolsa Família. Levou tempo para
saneá-la, até que em 2022 ela devolveu mais de R$ 350 bilhões em tributos e
dividendos ao governo.
Isso, contudo, não parece importar para o
CEO, Jean Paul
Prates, nem para o ministro de Minas e Energia, Alexandre
Silveira. Eles estão empenhados em voltar ao passado, da mesma forma que
parecem decididos a fazer crer que o saque promovido na petroleira pelos mesmos
partidos que hoje se digladiam por cargos e verbas do governo compõe alguma
fake news a ser investigada por Alexandre
de Moraes no STF.
Na tarefa, estão alinhados a gente como
Emílio Odebrecht, que lançou um livro só para dizer que foi torturado e coagido
pela Lava-Jato a confessar o pagamento de bilhões de reais em propina e caixa
dois.
É o mesmo Emílio que ri à larga no vídeo de
sua delação premiada, contando como avisou a Lula que seu pessoal tinha “boca
de crocodilo”. E que tinha os cem melhores advogados do Brasil a sua
disposição, mas só agora, com a volta de Lula ao poder, decidiu falar em
tortura e coação.
Em Brasília, porém, ninguém acha isso
estranho. Há até quem ostente indignação com a “injustiça” sofrida pelo pobre
empreiteiro. "Coisa de pervertidos. Claramente se tratava de prática de
tortura, usando o poder de Estado", disse Gilmar
Mendes outro dia no Supremo.
Como o decano do Supremo pode ser acusado
de muita coisa, menos de ser bobo ou ingênuo, faz sentido, sim, imaginar que a
punição a Dallagnol é só o começo. No voto pela condenação, o ministro do
TSE Benedito
Gonçalves sustentou que Dallagnol deveria ser punido por renunciar ao
posto no Ministério Público para escapar de Processos Administrativos
Disciplinares (PADs). Só que não havia PAD algum em curso quando Dallagnol
renunciou.
Numa entrevista ao Estadão, o professor da
Universidade de São Paulo Rafael Mafei — um crítico da Lava-Jato — diz que há
“incongruências” na decisão do TSE e reconhece que “talvez, se o personagem
fosse outro, o resultado seria diferente”.
Ninguém precisa ter simpatia por Dallagnol
para entender o que essa constatação significa. Aliás, bem ao contrário.
Criticava-se na Lava-Jato, e com razão, justamente aquilo que acontece agora
com sinal trocado. Mas a História mostra que, na política brasileira, a lei do
retorno costuma valer mais que a da ficha limpa. O mesmo poder que ontem cassou
Dallagnol pode, amanhã, acabar com a festa do sistema. E aí ninguém poderá
reclamar se não houver quem defenda as garantias que estão indo para o espaço.
Claro que Bolsonaro e o bolsonarismo de inspiração fundamentalista é execrável e precisa ser combatido todos os dias. Porém, há mais coisas fundamentalistas e excrráveis em nossa política e que igualmente é preciso combater.
ResponderExcluirEu vou neste momento colocar de lado o meu combate ao bolsonarismo fundamentalista e chamar a atenção dos lulistas fundamentalistas para este artigo da jornalista Malu Gaspar e a reflexão necessária que o artigo suscita.
Perfeito 😏
ResponderExcluirMuito bom.
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