Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Livro de Fernando Limongi refuta a tese de
que impeachment se deu por pressão das ruas ou fragilidade presidencial e
atribui queda de Dilma às fissuras da coalizão de governo que aí permanecem
“O
impeachment é como a bomba atômica, é para dissuadir, não para usar.” Passados
sete anos, a radioatividade alertada pelo ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso ainda paira sobre Brasília. Potencializada com a posse de Michel Temer,
cristalizou-se na ascensão do bolsonarismo e formatou a polarização da escolha
de Luiz Inácio Lula da Silva.
A frente ampla formada para derrotar Jair
Bolsonaro não se reproduziu no ministério. Mas esta é apenas uma das razões
pelas quais, quatro meses depois da posse, as pautas do governo não avançaram
no Congresso.
As mesmas forças que capitanearam o
afastamento de Dilma Rousseff hoje lideram o bloqueio ao governo Lula. Se, lá
atrás, o fizeram para conter o avanço da Lava-Jato, hoje se movem para manter o
espaço conquistado nos governos pós-impeachment.
Em “Operação impeachment - Dilma Rousseff e
o Brasil da Lava-Jato” (Todavia, 2023), Fernando Limongi refuta as teses de que
o afastamento de Dilma decorreu da pressão das ruas ou da fragilidade da
presidente, ainda que, do pico de popularidade com o qual assumiu, tenha
migrado para uma escalada do desemprego e o declínio acentuado da atividade
econômica.
O autor atribui sua queda às fissuras na
coalizão de governo e na própria operação Lava-Jato e mostra como o sistema
político se organizou para derrubar a presidente que o ameaçava. A blindagem a
Temer, presidente que governou sob rechaço popular, acaba por respaldar a tese
do livro.
Mergulha-se na leitura como o viajante de
uma jornada atropelada que se dá conta do que viu, ouviu e viveu com o registro
de fotos e filmes. Mais do que uma lanterna de popa, o resgate de Limongi, que
se aposentou como titular de ciência política da USP e hoje é professor da
FGV-SP e pesquisador do Cebrap, ajuda a navegar pelos sinais trocados da
conjuntura.
Permite entender por que o governo Lula não é, como se diz hoje em Brasília, o Dilma III. Se o presidente parece menos conciliador do que o foi nos seus primeiros mandatos e há clones dos personagens que pontificaram no impeachment, são outras as engrenagens que movem e relacionam os Três Poderes. E é outro o Brasil que o impeachment tirou da garrafa.
Tome-se, por exemplo, o resgate feito por
Limongi do deputado Bernardo de Vasconcellos, pelo antigo PR, hoje PL, de Minas
Gerais. Ao contrário de seu homônimo e conterrâneo, Bernardo Pereira de
Vasconcelos, líder escravagista do Partido Conservador no Império, o deputado
em questão tinha sido deixado no rodapé da história antes de ser resgatado no
livro.
Ele aparece como integrante do bloco que
propôs uma CPI para investigar a compra da refinaria de Pasadena, na Califórnia
(EUA). A história é conhecida. A Petrobras superfaturou
a refinaria. A compra havia sido aprovada pelo conselho da estatal a quem foram
sonegadas as cláusulas do contrato que explicavam o prejuízo
Como a presidente candidata à reeleição
integrava o conselho à época, estava pronta a armadilha armada por aqueles que
Dilma queria afastar da Petrobras.
Mas a presidente reagiu de pronto com uma nota de esclarecimento sobre o que
havia acontecido e matou a CPI. A reação desagradou a petistas, como o então
vice-presidente da Câmara, André Vargas (PT-PR), e deputados do Centrão, como
Bernardo de Vasconcellos, que, juntos, puxavam o coro do “volta Lula”.
A proximidade de Vargas com Cunha não
difere muito daquela mantida entre o atual líder do PT, José Guimarães (CE), e
Lira. A diferença é que Vargas, que seria cassado, preso e condenado por
envolvimento com o doleiro Alberto Youssef, nunca teve proximidade com Dilma,
ao contrário do que acontece entre Guimarães e Lula.
Dilma, com as dificuldades crescentes em
sua coalização, foi obrigada a ceder não apenas à corrente majoritária do
partido, Construindo Novo Brasil, como ao PT da Bahia, com a posse de Jaques
Wagner na Casa Civil. Lula já franqueou o poder aos petistas baianos desde a
campanha, com a entrega da Comunicação ao marqueteiro do governo da Bahia,
Sidônio Pereira, em detrimento de Franklin Martins, e da Casa Civil ao
ex-governador Rui Costa.
A presença de três representantes da
finança e do empresariado no governo (Joaquim Levy, Armando Monteiro e Katia
Abreu), a exemplo do que fez Lula em seu primeiro mandato, não facilitou a
relação de Dilma com o PIB. Ao contrário, como ministra, Katia Abreu
potencializou a artilharia da JBS contra seu governo. Lula III não reprisou seu
governo nem o de Dilma. O único empresário do governo, Carlos Fávaro, já tinha
passagens pelo Executivo (vice-governador do MT) e pelo Senado antes de assumir
a pasta da Agricultura.
Ao contrário de Dilma, porém, Lula tem um
aliado na Fiesp, Josué Gomes, mas tem mais dificuldades no agronegócio do que
nos oito anos em que governou, em grande parte, pela capitulação do campo ao
bolsonarismo. O presidente da Câmara de hoje, por outro lado, conservou, com
personagens paradigmáticos como André Esteves, relações tão ou mais próximas do
que aquelas mantidas pelo banqueiro do BTG Pactual com Eduardo Cunha.
Se próceres do Centrão, como Bernardo
Vasconcellos, alimentavam o “volta Lula” no primeiro governo Dilma, o bloco
hoje exibe suas insatisfações e alimentam as barganhas do atual presidente da
Câmara. O deputado Arthur Lira (PP-AL) arrancou, de Bolsonaro, o enterro da
Lava-Jato que Cunha havia fracassado em obter de Dilma e o sustentou no cargo a
despeito de 158 pedidos de impeachment.
Com Lula, Lira prosseguiu na ocupação do
orçamento público e da máquina de governo que o ex-presidente lhe franqueou.
Com os 464 votos amealhados para sua reeleição, adentrou o governo Lula mais
preocupado em manter os espaços conquistados do que em combater um lava-jatismo
que, capitulado ao bolsonarismo, perdeu tração.
As 15 assinaturas de seu partido ao pedido
de abertura da CPMI dos atos do 8 de janeiro em seu formato original, antes que
o governo cedesse à sua instalação, não existiriam sem o aval de Lira.
Demonstram que o intuito de recuperar os espaços perdidos ainda não foi
alcançado.
Além dos cargos, Lira, como Cunha, também
quer a cabeça do ministro da Justiça. Se José Eduardo Martins Cardozo se opunha
ao desarme da Lava-Jato, Flavio Dino resiste aos espaços almejados por Lira nas
superintendências estaduais da Polícia Federal.
A dubiedade de Lira decorre, em grande
parte, da disputa local com Renan Calheiros. Como o senador do MDB de Alagoas é
aliado do governo, Lira resiste a perder ainda mais espaço na política alagoana
para seu rival, que colocou o filho no ministério. Por isso equilibra-se entre
respaldar o arcabouço fiscal e fomentar a CPMI.
Não há dúvida, porém, de que os blocos
capitaneados pelo PP de Lira e o PSD de Rodrigo Pacheco tomaram os espaços que,
no governo Dilma, eram majoritariamente do MDB com Cunha, na Câmara, e Renan,
no Senado. Não faltaram articulações do MDB para ocupar a vice de Lula, mas a
escolha de Geraldo Alckmin, lembrado por Limongi como um dos últimos tucanos a
aderir à bomba atômica e um dos primeiros a dela se arrepender, acabou por
oferecer ao presidente a blindagem de que Dilma não pôde desfrutar.
Por mais que os personagens do impeachment
encontrem clones na conjuntura política, nenhuma mudança institucional é mais
marcante do que aquela operada no Judiciário. Se o Supremo, por meio de uma
liminar do ministro Gilmar Mendes, que o plenário não se apressou em julgar,
manteve Lula longe do ministério de Dilma e, com isso, afastou qualquer chance
de o governo se apetrechar para a batalha final, hoje Lula e a Corte se
aliançaram contra o bolsonarismo.
Parece outro o país em que os ministros se
juntaram sob a liderança de Mendes para pressionar o Congresso por uma emenda
constitucional que estendesse a aposentadoria dos ministros para 75 anos. A PEC
da Bengala evitaria que presidentes petistas fizessem 9 dos 11 ministros.
O ministro nomeado graças ao impeachment,
Alexandre de Moraes, acabaria por ser o fiador da investida contra Bolsonaro.
Moraes devolveu ao Supremo o voluntarismo que, em grande parte, marcou o
lava-jatismo, mas respalda sua atuação no vácuo da Procuradoria-Geral da
República
Se a ofensiva final da PGR de Rodrigo Janot
sobre as cúpulas partidárias, como mostra Limongi, levou a coalizão a jogar as
cargas ao mar - junto com a ex-presidente - para salvar a embarcação, o PGR
hoje não ameaça o sistema político. Tanto que o Congresso - e uma parte do PT -
pressiona pela manutenção de Augusto Aras, o PGR que encaçapou toda a ficha
corrida de Bolsonaro sem pressioná-lo com uma denúncia nem mesmo na pandemia.
A radioatividade do impeachment não apenas
condenou à inanição o PSDB, partido que armou a bomba com o pedido inicial de
recontagem dos votos, como rearranjou o sistema partidário. A aprovação da
cláusula de barreira e do fim das coligações deu início a um enxugamento do
quadro partidário. A engorda dos fundos eleitoral e partidário potencializou os
incentivos à concentração.
A bomba que explodiu no impeachment levou a
Bolsonaro - “uma outra história, tão ou mais trágica do que a que se acaba de
contar”, conclui Fernando Limongi. O ex-presidente só não renovou seu mandato
porque a Lava-Jato não alcançou seu objetivo de abreviar a vida política de
Lula.
O Judiciário vai cuidar de manter Bolsonaro longe das urnas e o mais próximo possível da cadeia. Só o desempenho deste governo, porém, poderá livrar o país da ameaça do populismo de direita que o impeachment tirou da garrafa.
Que barafunda!
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