quarta-feira, 10 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Arsenal comprado sob Bolsonaro ainda é ameaça

O Globo

A cada dia, três armas de fogo compradas legalmente por CACs são extraviadas ou desviadas para o crime

É preocupante constatar que, a cada dia, três armas de fogo compradas legalmente por colecionadores, atiradores desportivos ou caçadores (os CACs) são extraviadas ou roubadas. No ano passado, esse número bateu recorde. Foram 1.315 casos, de acordo com dados do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército, obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Casos de extravio podem ser atribuídos não só ao maior número de armas em circulação, mas também à simulação de furtos ou roubos para que as armas sejam desviadas para organizações criminosas. Tal fraude tem sido corroborada pelas apreensões policiais. Em março, a polícia do Espírito Santo descobriu que um fuzil apreendido com traficantes de Vila Velha constava como furtado no Exército. Estava registrado em nome de um CAC detido depois de investigações mostrarem que abastecia o crime com armas legais.

A facilidade para compra, posse e porte de armamentos (mesmo de uso restrito como fuzis) no governo Jair Bolsonaro e as falhas no controle desse arsenal criaram um ambiente propício a fraudes. É inegável que a permissão para que um CAC tivesse até 60 armas — quem precisa de 60 armas? — facilitou a vida dos criminosos. Revólveres, pistolas e fuzis comprados legalmente passaram a chegar rapidamente às mãos de traficantes, milicianos e homicidas.

É verdade que o atual governo tenta conter a farra dos CACs e clubes de tiro. Decretos de Bolsonaro que contribuíram para promover o derrame de armas no mercado foram temporariamente suspensos. Foi determinado um recadastramento cujo prazo terminou há uma semana. No dia seguinte, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, informou que quase 1 milhão de armas (939.154) foram recadastradas. No mesmo dia, a PF prendeu em vários estados do país 52 CACs com mandado de prisão em aberto que não haviam recadastrado suas armas. São medidas sensatas, mas não resolvem o problema: o arsenal comprado legalmente continua circulando por aí.

Seria ingenuidade imaginar que essas armas estão bem guardadas e não correm risco de parar nas mãos de criminosos. A realidade mostra o contrário. Mesmo que estejam em posse de cidadãos bem-intencionados ou de agentes de segurança experientes, o risco é enorme.

Os tiroteios e os conflitos resolvidos à bala se tornaram uma triste rotina nas cidades. Num único fim de semana no Rio, sete cidadãos foram atingidos por balas perdidas em diferentes regiões — duas mulheres e uma criança de 11 anos morreram. Uma das vítimas voltava de uma festa com amigos por uma das avenidas mais movimentadas da cidade quando se viu no meio de uma perseguição policial. Outras duas eram irmãos que estavam no portão de casa numa comunidade da Zona Norte.

Pouco importa se os tiroteios aconteceram entre quadrilhas rivais ou entre policiais e bandidos. Isso não aplaca a dor das famílias. Claro, a falta de segurança não se resume ao excesso de armas. Mas elas são personagem de destaque na barbárie. Num país com altos índices de criminalidade, 1 milhão de armas em circulação — sabe-se lá nas mãos de quem — é um cenário propício a novas tragédias.

Nova denúncia contra Codevasf expõe incúria no uso de recursos públicos

O Globo

Fazenda ligada à Igreja Universal na Bahia foi beneficiada de modo irregular, segundo auditoria da CGU

Às voltas com mais um escândalo, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) precisa explicar por que usou R$ 2,3 milhões de dinheiro público para beneficiar uma propriedade privada ligada à Igreja Universal do Reino de Deus no município de Irecê, Bahia. Recursos para obras de pavimentação, mostrou reportagem do GLOBO, foram destinados a pedido do deputado Márcio Marinho (Republicanos-BA), bispo da Universal, por meio de emenda da bancada baiana.

Conhecida no governo Bolsonaro como feudo do Centrão e paraíso do orçamento secreto, destino de verbas obscuras para obras não menos obscuras, a Codevasf se transformou numa fábrica de problemas. Em julho do ano passado, a superintendência da estatal no Maranhão foi alvo de uma operação da Polícia Federal que investigou fraudes em contratos de obras e lavagem de dinheiro. Com a chegada de Lula ao governo, a Codevasf continuou em seu caminho errático, servindo de cabide de empregos a apaniguados e parentes de políticos influentes sem dar a mínima para o interesse público.

Agora, as denúncias recaem sobre a Fazenda Canaã, registrada em nome da Associação Beneficente Projeto Nordeste, dirigida por bispos da Universal. Ela foi comprada na década de 1990 por Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), ex-prefeito do Rio e atual deputado. Nas propagandas políticas de Crivella, a Canaã sempre ocupou lugar de destaque, tratada como exemplo que poderia servir a outras regiões.

Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, a Codevasf doou à associação que administra a propriedade uma retroescavadeira, duas caminhonetes e uma van compradas com dinheiro público. O asfaltamento de 25 mil metros quadrados de ruas foi concluído em abril de 2022. Em março deste ano, uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) detectou irregularidade no uso de recursos do Orçamento para beneficiar uma fazenda privada.

Os argumentos usados pela Codevasf não convencem. A companhia alegou que a instituição beneficiada presta serviços sociais, sem fins lucrativos, e “assemelha-se a caráter público”. O projeto social, que oferece atividades educacionais e esportivas a crianças, é mantido por instituto ligado a Edir Macedo, fundador e autoridade máxima da Universal. Apesar da explicação, a própria Codevasf afirmou que “tal tipo de situação não se repetirá”.

O governo deveria pedir ressarcimento dos recursos usados numa propriedade privada para que eles possam ser destinados a áreas onde são realmente necessários. Não se questiona o valor do trabalho social desenvolvido pela instituição, mas os administradores devem buscar outras formas de mantê-lo. O episódio expõe mais uma vez o problema das obras feitas sem transparência, caraterística que define a Codevasf, estatal voltada mais para atender a interesses paroquiais dos parlamentares — sabe-se lá a que custo — que às legítimas demandas dos contribuintes que a financiam.

BC sob lupa

Folha de S. Paulo

Cruzada populista de Lula alimenta dúvidas sobre indicações para cúpula do órgão

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou uma armadilha para seu governo ao insuflar uma cruzada populista contra as taxas de juros e a autonomia do Banco Central: doravante, todos os movimentos relacionados à política monetária serão examinados com lupa e estarão sujeitos a reações de desconfiança.

É o que ocorre agora com as primeiras indicações de Lula para a cúpula do BC —a do servidor Ailton Aquino dos Santos, para a diretoria de Fiscalização, e, sobretudo, a do economista Gabriel Galípolo para a de Política Monetária.

Em circunstâncias normais, escolhas do gênero não despertariam maior preocupação. Trata-se, afinal, de apenas dois nomes que, se aprovados pelo Senado, comporão um colegiado de nove com direito a voto na definição dos juros.

Entretanto as atitudes de Lula, seguidas por seu partido e boa parte de seu ministério, suscitam temores justificáveis de que o Planalto queira impor seus interesses políticos na gestão do BC.

Ademais, Galípolo, com experiência no mercado financeiro e hoje o número dois da pasta da Fazenda, já defendeu teses heterodoxas no passado recente, embora venha adotando comportamento discreto desde o início do governo.

O Brasil ainda engatinha na experiência de autonomia formal do BC, instituída em 2021 com o objetivo de fortalecer o controle da inflação —que, dos males econômicos, é o mais socialmente perverso.

Gestões anteriores, porém, já haviam concedido autonomia na prática ao órgão, com bons resultados.

Entre eles destacam-se os do próprio Lula, quando os juros, aliás, se mantiveram por anos acima dos patamares atuais. Só um oportunismo rasteiro, portanto, explica a celeuma atual em torno do tema.

A definição das taxas, evidentemente, merece questionamento e debate técnico especializado, que não deve estar circunscrito à autoridade monetária. É também natural e mesmo desejável que executivos com diferentes pontos de vista participem das deliberações.

Indicados pelo governo petista serão maioria no Comitê de Política Monetária (Copom) a partir de 2025, quando também será substituído o presidente do BC, Roberto Campos Neto. Especula-se que Galípolo poderá ocupar o posto.

Até lá, é possível que o surto inflacionário herdado da pandemia de Covid-19 já esteja inteiramente superado, o que tornará a missão do órgão menos controversa.

Em qualquer hipótese, convém que os escolhidos zelem desde logo por sua credibilidade. Sinais de leniência com a inflação, de submissão a pressões políticas ou de propensão a experimentalismos temerários não raro resultam na necessidade de juros mais altos, como se viu sob Dilma Rousseff (PT).

Literatura limitada

Folha de S. Paulo

Restrições a livros aumentam no mundo, expondo preconceito ou hipersensibilidade

Conservadores radicais nos Estados Unidos vêm conseguido banir livros de bibliotecas e escolas públicas. Segundo levantamento da ONG Pen America, mais de 2.500 proibições foram emitidas por juntas escolares em 32 estados americanos no ano letivo de 2021-22.

A maioria das obras aborda questões de gênero ou raciais. Com 801 proibições, o Texas lidera a lista deplorável, seguido por Flórida (566) e Pensilvânia (457).

No Brasil, uma universidade privada de Goiás retirou o livro "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios", de Marçal Aquino, da lista de obras indicadas para o vestibular. A decisão veio após o deputado Gustavo Gayer (PL-GO) acusar a obra de pornografia.

Mas a sanha restritiva não é exclusividade da direita. Em 2019, a escola pública Tàber, em Barcelona, retirou 200 livros destinados a alunos de até seis anos por reproduzirem padrões de comportamento tachados de sexistas por militantes. Entre as obras estavam clássicos como "Chapeuzinho Vermelho" e "A Bela Adormecida".

Outro modo de interditar a arte literária é a edição de trechos considerados ofensivos. Neste ano, no Reino Unido, livros de Roald Dahl, autor de "A Fantástica Fábrica de Chocolate", tiveram trechos alterados para atender ao público que achava sexistas e gordofóbicos alguns dos termos usados.

Aqui, "A Menina do Narizinho Arrebitado", de Monteiro Lobato, também foi reeditado para excluir expressões de fato racistas.

Tais medidas perdem de vista que a literatura é um modo de conhecer o passado e ferramenta poderosa de aprendizado emocional.

Falas preconceituosas de séculos atrás podem ser esclarecidas em notas de rodapé ou com a ajuda de pais e professores. Da mesma forma, se determinadas palavras causam desconforto, trata-se de oportunidade para que o leitor, seja criança ou não, aprenda a lidar com seus sentimentos.

Com relação ao banimento, uma decisão da Suprema Corte da Califórnia já em 1924 havia apontado a falta de sentido da medida: o mero fato de um livro constar do acervo de uma biblioteca não implica que seu conteúdo será aprovado ou adotado pelo leitor.

Passados quase cem anos, leitores à direita e à esquerda ainda precisam compreender que uma biblioteca ou um livro sempre poderá conter algo que desagrade a alguém —e que o escrutínio do debate público é preferível à exclusão.

O relógio de Lula

O Estado de S. Paulo

Ignorando o eleitor que votou nele apenas para impedir a reeleição de Bolsonaro e desrespeitando decisões soberanas do Congresso, o presidente quer fazer o Brasil voltar no tempo

O petista Lula da Silva parece não ter entendido por que foi eleito presidente da República. Ao tentar reverter no tapetão a privatização da Eletrobras, pouco depois de ter buscado, por decreto, destruir o Marco do Saneamento para favorecer estatais ineficientes do setor, Lula desrespeita ao mesmo tempo o Congresso e os muitos eleitores que nele votaram não por simpatizarem com a embolorada agenda lulopetista, mas apenas para impedir que Jair Bolsonaro se reelegesse.

No discurso, Lula da Silva se opõe às privatizações porque as considera “um crime de lesa-pátria”, como classificou o caso da Eletrobras, “um patrimônio deste país”, segundo disse. Na prática, contudo, muitas estatais servem como cabide de emprego para arregimentar apoio político, fundamental para um governo incompetente na articulação com o Congresso, e de quebra para acomodar sindicalistas companheiros. Por isso, quanto mais estatais, melhor para os estatólatras.

A afronta de Lula ao que foi decidido pelo Congresso com relação à Eletrobras e ao setor de saneamento básico não passou despercebida pelas lideranças parlamentares.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, classificou como “preocupante” a fixação do presidente em reverter a privatização da Eletrobras no Supremo Tribunal Federal. À CNN Brasil, Lira afirmou que Lula tem todo o direito de não propor mais privatizações em seu governo, “mas mudar um quadro que já está jogado e definido, e com muitos grupos, muitos países investindo, realmente causa ao Brasil uma preocupação muito forte”. Trata-se de constatação óbvia: mudar as regras do jogo de supetão, sem justificativa outra que não seja a adição petista à máquina estatal, amplia a sensação de que contratos no Brasil não valem o papel em que são escritos.

Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, lembrou que a privatização da Eletrobras “foi algo muito debatido na Câmara e no Senado”, que o novo status da empresa “é uma realidade” e que seria “mais útil ao Brasil” discutir reforma tributária e o novo regime fiscal.

Mas Lula é incapaz de vencer sua natureza autoritária, convenientemente camuflada pelo figurino do democrata que se apresentou como contraponto ao golpismo bolsonarista. Bastaram alguns meses de governo para se perceber que Lula, sem qualquer pudor, quer impor o atraso petista na marra, recorrendo ao Judiciário para tentar desfazer o que foi decidido pelo Congresso, em particular no que diz respeito às estatais. Não foi à toa que o lulopetismo, por meio de seus aliados, ajudou a fazer carga contra a Lei das Estatais, que acabou com a esbórnia das nomeações políticas para essas empresas, justamente em resposta aos escândalos da trevosa era petista.

Ademais, os brasileiros moderados que foram decisivos para a vitória de Lula não votaram para reverter a reforma trabalhista, como ainda acalentam os petistas, nem para enterrar a reforma do ensino médio e, menos ainda, para fazer letra morta da Lei de Responsabilidade Fiscal, como fica claro na proposta de novo regime fiscal.

Passar uma borracha por cima dessas conquistas, é preciso deixar bem claro, é uma agenda histórica do PT e de partidos coligados, não o desejo da maioria dos eleitores que votaram por uma composição do Congresso que claramente não se coaduna com o ímpeto revisionista que anima o Palácio do Planalto.

Lula nem ao menos pode dizer que as “revisões” que ele propõe para marcos legislativos que mal se consolidaram, como é o caso da privatização da Eletrobras, serviriam para melhorar esses projetos, eliminando, por exemplo, muitos “jabutis” que foram aprovados a reboque deles. Quando fala em reverter a privatização da Eletrobras, Lula está movido apenas pelo desejo de desfazer tudo o que foi feito depois da estrepitosa ruína petista, marcada por escândalos de corrupção, por uma brutal recessão e pelo justíssimo impeachment de Dilma Rousseff. Lula quer fazer o relógio do Brasil andar para trás. Cabe ao Supremo dizer a ele que isso não pode.

A preservação da imunidade parlamentar

O Estado de S. Paulo

Projeto sobre plataformas digitais não cria exceções a políticos. Só prevê, corretamente, que as prerrogativas constitucionais dos parlamentares também devem valer nas redes sociais

Uma das frequentes críticas contra o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, sobre o novo marco regulatório para as plataformas digitais, é a de que os parlamentares estariam criando uma lei que se aplica a todos os brasileiros, exceto a eles próprios. Seria a prova irrefutável da hipocrisia: os políticos defendem a urgente necessidade de estabelecer novos limites para toda a sociedade – de forma a proporcionar, entre outros bens, um debate público mais responsável e civilizado, menos dominado pela desinformação –, mas eles mesmos não querem submeter-se às novas regras. Essa seria uma das principais razões, dizem os críticos do projeto, para desmoralizá-lo.

No entanto, em vez de explicitar um defeito estrutural do projeto de lei ou um generalizado mau caratismo dos políticos, essa crítica expõe como o debate sobre tema vital para o País está sendo feito não apenas em termos rasos, como tem sido descaradamente manipulado. O PL 2.630/2020 não cria exceções para políticos. O dispositivo tão criticado, que supostamente privilegiaria os parlamentares, apenas dispõe que a imunidade prevista no art. 53 da Constituição – “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” – também se aplica “aos conteúdos publicados por agentes políticos em plataformas mantidas pelos provedores de redes sociais e mensageria privada”.

Nesse ponto em concreto, o PL 2.630/2020 não faz, portanto, nada além do que assegurar a vigência da Constituição nas redes sociais. Tratase de objetivo adequado e estritamente necessário para um projeto de lei que vem estabelecer um novo marco jurídico para as plataformas digitais.

Na crítica à tal “exceção para os políticos” do PL 2.630/2020, vislumbrase na verdade uma grande incompreensão sobre as prerrogativas constitucionais dos parlamentares. Elas não constituem privilégios pessoais nem criam uma categoria especial de cidadãos, sobre os quais as leis aplicáveis a todos os demais não valeriam. Fossem assim as imunidades parlamentares, o sistema constitucional seria incoerente e disfuncional, já que o Estado Democrático de Direito se estrutura a partir do princípio basilar da igualdade de todos perante a lei.

As prerrogativas parlamentares – entre as quais se inclui, conforme o art. 53 da Constituição, a inviolabilidade civil e penal por opiniões, palavras e votos – são uma proteção do regime democrático e efetivo respeito aos direitos políticos de todos os cidadãos. Elas não foram criadas por diletantismo. Como a história ensina, a perseguição contra parlamentares costuma ser uma das primeiras medidas impostas por ditaduras. Às vezes, é realizada diretamente, sem nenhum pudor; outras, por meio de processos judiciais enviesados e parciais, cuja função é tão somente dar aparência de legalidade aos desmandos do regime despótico.

Por isso, as prerrogativas parlamentares não têm nada de imoral ou de antirrepublicano. Não são uma concessão à impunidade nem representam uma espécie de legislação em causa própria. A inviolabilidade de senadores e deputados por opiniões, palavras e votos ajuda a construir as condições para um debate livre e plural de ideias, elemento essencial do regime democrático.

Tal como o texto constitucional dispõe e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece, essa inviolabilidade não é autorização para a prática de crimes, também no ambiente virtual. No ano passado, a condenação pelo STF do deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de prisão mostrou o equívoco de quem pensava que o art. 53 da Constituição preservaria os parlamentares dos efeitos da lei – em concreto, da lei penal.

Na verdade, o PL 2.630/2020 cria obrigações adicionais aos políticos. Por exemplo, em suas contas oficiais, os parlamentares “não poderão restringir a visualização de suas publicações”.

O País não pode ficar refém de narrativas manipuladoras. É hora de debater responsavelmente, sem fantasmas, a necessária regulação das plataformas digitais.

A reviravolta no Chile

O Estado de S. Paulo

Constituinte esquerdista malogrou por sua vendeta contra a direita. Espera-se que a direita, vitoriosa, não cometa esse erro

As eleições para a nova Assembleia Constituinte chilena não deixam dúvida quanto ao derrotado: a coalizão governista de esquerda obteve só 17 das 50 cadeiras. A vitória da oposição de direita é mais relativa. A direita tradicional e moderada (a coalizão Chile Seguro) obteve só 11 cadeiras. O triunfo indisputável foi da nova direita radical, o Partido Republicano, com 22 cadeiras. O resultado, paradoxalmente previsível e surpreendente, expõe as dimensões da instabilidade política chilena e do desafio que as forças na Constituinte, no Parlamento e no Executivo enfrentarão para levar a nova Carta a bom termo.

O resultado surpreende quando se considera o giro de 180° em relação à onda refundacional que varreu o país após os protestos massivos de 2019. Os líderes partidários se viram obrigados a ativar um plebiscito e 78% dos eleitores votaram para substituir a Constituição herdada da ditadura de Augusto Pinochet. Os progressistas surfaram nessa onda. Primeiro, com a composição da primeira Constituinte, em 2020, fundamentalmente com representantes das esquerdas (a nova e a radical) e candidatos independentes. Depois, em 2021, o jovem progressista Gabriel Boric foi eleito presidente.

Por outro lado, o resultado é previsível considerando o malogro da esquerda. A primeira proposta de Constituição resultou numa lista hipertrofiada de desejos progressistas maximalistas que acabou rechaçada por 62% dos eleitores. A popularidade de Boric derreteu com a convergência de quatro crises: a migratória (de venezuelanos); a dos incidentes violentos dos povos Mapuche; a econômica; e, sobretudo, a da segurança pública. A direita radical aproveitou essa tempestade perfeita para retaliar. O paradoxo é que ela se vê no comando de um processo constituinte ao qual se opôs.

A direita tradicional vive um aparente dilema: pode se dobrar aos radicais, formando uma maioria qualificada apta a aprovar o que quiser à revelia da esquerda, ou se opor a eles, aliando-se à esquerda. Ocorre que a bancada radical tem poder para vetar o que bem entender.

O presidente Boric apelou aos vitoriosos para que não cometam os mesmos erros de sua coalizão e “saibam escutar quem pensa distintamente”. De fato, se os Republicanos extremarem posições, provavelmente serão rechaçados no plebiscito de dezembro que aprovará ou não a Carta.

O fiel da balança está no centro. Mas ele está esvaziado e precisará se recompor. Isso implica que a esquerda moderada (o Partido Socialista, com sete cadeiras) saiba construir pontes com a centro-direita, especialmente em relação a direitos sociais. Eles foram o motor que levou os chilenos a optar por uma nova Constituição. A atual garantiu as condições para um crescimento econômico robusto, mas falhou na distribuição dos dividendos. Na última Constituinte, correu-se o risco de jogar o bebê (do crescimento) junto com a água do banho. Na atual, se a direita reacionária não se moderar e se o centro não se entender, corre-se o risco inverso: de jogar fora a água do banho, deixando o bebê sujo.

Governo quer enquadrar BC e mudar política monetária

Valor Econômico

O governo pretende subordinar o BC à sua política, o que ampliará o fôlego da inflação, a instabilidade econômica e a discórdia política

Precedida pela incessante retórica bélica do presidente Lula contra o Banco Central, a indicação de Gabriel Galípolo, número dois do Ministério da Fazenda, para a diretoria da instituição tem apenas um sentido, independentemente das qualificações do candidato: a política monetária terá de mudar para se adequar aos interesses políticos do governo, favorecendo o crescimento da economia a qualquer custo. Pelas regras estabelecidas para a autonomia do BC, é um direito legítimo do Executivo, embora ele não defenda explicitamente uma visão alternativa para combater a inflação. A rigor, nem se considera que ela seja um problema - Lula e o ministro da Fazenda raramente mencionam a palavra.

Lula e o PT não gostam da autonomia do BC, mas são impotentes para revogá-la, como tentam com a privatização da Eletrobras e com o marco do saneamento, iniciativa a caminho da derrota no Congresso. Há uma desonestidade intelectual nos argumentos do governo sobre o BC. No primeiro mandato de Lula, a taxa de juro real foi maior que a de hoje para deter a inflação, e a receita era tida como correta porque o presidente do BC fora nomeado por Lula. Não é o caso de Campos Neto.

O Congresso aprovou a autonomia do BC e a política monetário da atual gestão é ortodoxa, seguindo outra regra aprovada pelo Legislativo: é preciso fazer tudo o que for possível para que a inflação obedeça aos parâmetros das metas de inflação. O PT foi contra ambos: autonomia e metas. Pode tentar mudá-las. No primeiro caso, terá de revogá-la no Congresso, sem chances de sucesso. Para o segundo, basta uma decisão do Conselho Monetário Nacional, no qual o governo tem maioria, mas o governo teme por enquanto as repercussões. Lula disse que o BC “não tem compromisso com o Brasil”, o que pressupõe que só quem concorda com o Executivo na questão o tem.

Quem melhor resumiu o objetivo do governo com a indicação de Galípolo para a diretoria do BC foi a ministra do Planejamento, Simone Tebet: “É uma pessoa que será a voz do governo federal, a voz do Brasil dentro do Banco Central”. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, preferiu a cantilena habitual: é preciso alinhar a política fiscal e a monetária. Mas em qual direção: expansionista ou contracionista? Essa é a questão central e a resposta do governo parece indicar a disposição de baixar os juros na marra, como fez a presidente Dilma Rousseff, com consequências que assolam a economia até hoje.

O governo não produziu até hoje um diagnóstico coerente. Afirmar que a inflação não é de demanda, logo é de oferta, não encontra respaldo nos fatos. Supô-la significa que o remédio dos juros altos é incorreto e os preços virão abaixo de alguma outra forma. Se for assim, qual é o sentido de baixar os juros e incentivar o consumo, se o problema é, por definição, de gargalos de oferta?

Ironicamente, quando a inflação começou a subir, antes no Brasil e depois nos países desenvolvidos, os BCs demoraram a reagir. O BC brasileiro manteve juros baixos por bom tempo prevendo que a inflação era provisória, argumentando em parte com a quebra de cadeias produtivas e diminuição da disponibilidade de bens e serviços. O IPCA ficou acima de 10% por mais de um ano, e recua lentamente desde então com forte aperto monetário.

Por que a inflação não cai mais rapidamente? Em atas, o Copom se debruça sobre esta questão há tempos e a resposta mais verossímil está na alta demanda por serviços, que recompõe salários um pouco acima da inflação, estimula o emprego, enquanto que os fortes impulsos fiscais eleitorais de Bolsonaro incentivaram o consumo. Na ata divulgada ontem, o BC perambula por caminhos outros, sem chegar a uma conclusão. Especula, por exemplo, com o fato de os juros neutros terem subido com a perspectiva de deterioração fiscal e de expectativas desancoradas, motivos pelos quais a carga atual da Selic não estaria tendo todos os efeitos esperados. Já o governo não apenas não tem uma resposta, mas sequer se coloca a pergunta.

Com o esfriamento da economia e sem descontrole fiscal, que o novo regime proposto ameniza, a inflação entrará no intervalo das metas, próximo de 3%, no ano que vem. Se os juros forem mantidos, prevê o Copom, o IPCA fecha 2024 em 2,9%. Com a Selic reduzida a 12,5%, a inflação vai a 3,6% no fim de 2024. Os números indicam que os juros cairão no segundo semestre.

O governo não pensa assim, por motivos que não parecem técnicos, mas políticos. Um crescimento robusto permite gastos maiores, receitas maiores e acomoda bem mais facilmente as demandas de parlamentares, de oposição ou não. Esta foi a conjuntura que propiciou os bons resultados dos primeiros mandatos de Lula. Ela não existe mais. A economia global perde fôlego com o aumento de juros nos países desenvolvidos e há dúvidas sobre a performance da China nos próximos anos. Para crescer, o Brasil terá de pôr a casa em ordem. O governo pretende subordinar o BC à sua política, o que ampliará o fôlego da inflação, a instabilidade econômica e a discórdia política.

 

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