sexta-feira, 12 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Manipulação põe credibilidade do futebol em xeque

O Globo

Única forma eficaz de combater as fraudes é expulsar os atletas que receberam dinheiro para forjar cartões

Quando veio à tona, em fevereiro, a denúncia de manipulação de resultados para favorecer apostas esportivas fraudulentas parecia um problema restrito à série B do Campeonato Brasileiro. As investigações do Ministério Público de Goiás (MP-GO), porém, revelaram um esquema criminoso disseminado pelas competições mais importantes do país, envolvendo jogadores de gigantes do futebol brasileiro e ramificações em ligas do exterior. A credibilidade do esporte está em xeque.

De acordo com as investigações, jogadores eram aliciados pela quadrilha para cometer pênaltis ou receber cartão amarelo ou vermelho durante as partidas, favorecendo criminosos que apostavam nesses eventos em sites. Uma planilha apreendida pelo MP mostra que atletas recebiam do esquema até R$ 80 mil pela fraude. Inicialmente eram pagos R$ 10 mil a R$ 50 mil como adiantamento. O restante só era liberado depois do cumprimento do acordo. Clubes e empresas de apostas são tratados como vítimas do esquema, já que não há indícios de participação.

Ao menos 35 atletas estão sob investigação. Sete foram denunciados à Justiça nesta semana. Quatro confessaram e fizeram acordo para colaborar com o MP. Outros oito já haviam se tornado réus na primeira fase da Operação Penalidade Máxima. Embora o caso esteja ainda em apuração, os clubes cujos jogadores são citados — ainda que não formalmente denunciados — agem com sensatez ao afastá-los temporariamente dos gramados até que os fatos sejam esclarecidos. Na rodada desta semana da Série A do Brasileiro, nove atletas ficaram fora das partidas.

CBF e clubes estão certos em defender uma investigação ampla das denúncias e punição para os culpados. Na quarta-feira, o ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou a abertura de inquérito pela Polícia Federal para apurar o caso. A manipulação de resultados será alvo também da CPI das Apostas Esportivas, prestes a ser instalada. Paralelamente, o governo está finalizando uma MP para regulamentar apostas esportivas no país. A intenção é dar mais transparência ao setor.

O esquema para combinar resultados e favorecer apostas ilegais tem efeito desastroso sobre o futebol, por abalar a confiança nos campeonatos. É verdade que a fraude não acontece só no Brasil. Fifa e CBF mantêm contrato com uma agência para monitorar movimentações suspeitas em sites de apostas. Mas o esquema só foi descoberto porque um dos acordos deu errado e vazou. Não fosse isso, jogadores corruptos continuariam cometendo pênaltis e tomando cartões por vontade própria.

Não se pode garantir que essa prática criminosa tenha influenciado o resultado das partidas e a classificação do campeonato. Mas um pênalti marcado ou a expulsão de um jogador podem mudar o rumo de uma partida. Por isso é fundamental investigar a fundo as denúncias e, confirmadas as fraudes, punir os culpados com o rigor da lei. Com a proliferação de apostas de todo tipo, é pouco provável que a pressão sobre jogadores diminua. Sempre haverá um aliciador rondando os vestiários com promessas tentadoras. A única forma de combater a máfia da manipulação de resultados é mostrar que um mero cartão forjado pode levar o jogador à expulsão definitiva do futebol.

Elo de garimpeiros e facção criminosa exige ação coordenada do governo

O Globo

Houve pelo menos 17 mortes nos últimos dias nos confrontos entre ianomâmis, invasores e policiais

Embora o governo esteja fazendo operações para retirar os garimpeiros ilegais que ocupam as terras ianomâmis, a reserva ainda parece longe de pacificada, como mostram os conflitos que fizeram nos últimos dias pelo menos 17 mortos. No dia 29 de abril, três indígenas foram baleados durante um ataque de garimpeiros na comunidade de Uxiu — um deles, agente de saúde, morreu. Desde então, a violência só aumentou.

No dia 30, quatro garimpeiros foram mortos durante uma operação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Ibama para reprimir a extração ilegal na reserva ianomâmi. A PRF alega ter revidado quando atiraram contra os agentes. O episódio expôs a associação nefasta entre o garimpo ilegal e o narcotráfico. No local, foram apreendidos um fuzil, três pistolas, sete espingardas, munição e carregadores. Investigações mostraram que pelo menos um dos garimpeiros mortos no confronto integrava uma facção criminosa de São Paulo que atua na região. As cenas de violência prosseguiram. No dia 1º de maio, a PF localizou oito corpos na comunidade de Uxiu. Suspeita-se que sejam de garimpeiros. No último sábado, uma mulher foi encontrada morta na região. Outro confronto próximo à comunidade de Xitei deixara três vítimas em 25 de abril.

Desde o início do ano, uma força-tarefa tem tentado reprimir o garimpo ilegal e retirar invasores das terras ianomâmis. O governo afirma que as ações já inutilizaram 82 embarcações e oito aeronaves. Parte dos garimpeiros saiu espontaneamente, mas parte ainda resiste. Estima-se que 20 mil garimpeiros ilegais ocupavam a reserva. Não se sabe quantos ainda permanecem.

O combate ao garimpo ilegal precisa ser feito em várias frentes, e as operações policiais são apenas uma delas. Por isso fez bem o Supremo Tribunal Federal (STF) em pôr fim à presunção de boa-fé no comércio de ouro. Bastava o vendedor declarar que o metal vinha de área legalizada para que a negociação fosse adiante. A prática já estava suspensa por liminar do ministro Gilmar Mendes, agora confirmada por unanimidade. A decisão não resolve o problema, mas impõe mais dificuldade para vender ouro ilegal.

As operações contra o garimpo ilegal são necessárias. Só se chegou à situação atual de anomia porque não havia fiscalização nem repressão aos criminosos. Elas devem atuar sobretudo para conter a violência. Para isso, é fundamental ocupar o território e combater a infraestrutura que alimenta o garimpo, como pistas de pouso, maquinários ou embarcações. Paralelamente, é preciso atualizar a legislação para dificultar o comércio ilegal e oferecer oportunidades aos garimpeiros que sairão da reserva pacificamente. Tudo isso demanda um trabalho consistente. Não é tarefa fácil, mas é essencial.

Política desajustada

Folha de S. Paulo

Falhas de articulação tornam imprevisível a base de sustentação do governo Lula

Foram semanas ruins para o governo no Congresso. A base do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) exibiu todo o seu desajuste quando se viu diante de votações que, para além de seu significado intrínseco, representavam também os primeiros testes de fidelidade.

Os sinais de descoordenação despontaram com o projeto de lei 2.630/2020, apelidado de PL das Fake News. Em meio a ampla pressão das big techs e de parte da opinião pública, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sentiu o risco de derrota no ar e adiou a votação a fim de evitar um vexame.

Em seguida veio o marco do saneamento: a Câmara houve por bem derrubar mudanças baixadas por decretos de Lula. Espanta, nesse caso, menos o resultado em si —as alterações constituíam verdadeiros retrocessos— do que o placar, 295 a 136 contra o governo.

Do ponto de vista do Palácio do Planalto, são dois reveses cujo sabor amargo resta pouco adocicado por vitórias como a manobra para garantir maioria governista na CPI do 8 de janeiro ou a aprovação, pelo Senado, da medida provisória que modifica regras na tributação de multinacionais.

Ainda que esses dois êxitos indiquem alguma capacidade de articulação da base lulista, eles não escondem a dificuldade de fundo deste governo. Uma coisa é vencer discussões pontuais; outra, bem diferente, é conquistar maioria quando se trata de debater iniciativas legislativas mais abrangentes.

Não há melhor exemplo do que o projeto da nova regra fiscal, ferramenta voltada ao controle da dívida pública brasileira. Chegou-se a projetar sua votação para o dia 10, mas o governo não conseguiu consenso em torno da proposta.

No intuito de aparar essas arestas, o Palácio do Planalto conduziu na quarta-feira (10) reuniões com representantes de dois partidos da base, o PSB e o PSD. Se o governo cobrou mais apoio no Congresso, os representantes das legendas pediram a liberação de cargos e do dinheiro de emendas.
São demandas antigas na política, mas, nos últimos anos, ganharam nova relevância. De um lado, porque

Lira descobriu como carrear verbas para as bases eleitorais dos deputados; de outro, porque as redes sociais permitem ao parlamentar alardear suas obras.

Lula e seus articuladores talvez não se tenham dado conta disso. Parecem imaginar que podem fazer política como há 20 anos, quando subiram a rampa pela primeira vez.

Se o governo federal pretende melhorar sua relação com o Congresso, precisará indicar com mais clareza o rumo que vai tomar —e terá de garantir que esse rumo seja confortável para os parlamentares, pois, do contrário, eles escolherão seu próprio caminho.

Cartão amarelo

Folha de S. Paulo

É interesse do público gigantesco que se investigue indício de fraude no futebol

O futebol tem tamanha importância na cultura nacional que por vezes pode-se esquecer que a gestão do esporte pertence à esfera privada, não às atribuições do Estado.

Mas é de interesse de um público consumidor gigantesco —para nem mencionar o de milhares de jovens que ingressam na atividade em busca de ascensão social— que os recentes e graves indícios de fraudes em competições do país merecem apuração rigorosa das autoridades e atitudes responsáveis dos organizadores.

Operação Penalidade Máxima, deflagrada pelo Ministério Público de Goiás, começou a partir de um episódio aparentemente menor e pontual, no final do ano passado, envolvendo o clube goiano Vila Nova, que disputa a Série B do Campeonato Brasileiro.

A partir da suspeita de que um atleta havia aceitado suborno para cometer pênalti durante uma partida, chegou-se ao que parece ser um esquema de manipulação de resultados e eventos de jogo (cartões amarelos e vermelhos, infrações e escanteios) com o objetivo de favorecer apostadores.

Depois de operações de busca e apreensão e descobertas de mensagens trocadas por meio de aplicativos, já há 36 pessoas e 13 partidas sob investigação, das quais 8 da Série A de 2022. Nove jogadores foram afastados por seus clubes, aí incluídas agremiações tradicionais e de grandes torcidas, como Santos, Fluminense e Cruzeiro.

Na quarta-feira (10), o Ministério da Justiça determinou que a Polícia Federal passe a apurar o caso. Nesta quinta (11), o Senado decidiu encarregar uma comissão de fazer o mesmo. Uma CPI deve ser aberta na Câmara dos Deputados.

Está em jogo a credibilidade de competições que atraem paixões, tempo e dinheiro de milhões de brasileiros. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) descarta, ao menos por ora, suspender os torneios —posição que será mais difícil de sustentar na hipótese de surgirem mais envolvidos no esquema, em especial árbitros.

O incentivo a fraudes é inerente ao esporte, mesmo nas modalidades amadoras, e ao mundo das apostas. A permanência do interesse do público, nos dois casos, depende de boa regulação, fiscalização e respostas contundentes às transgressões detectadas.

O futebol brasileiro, de enorme prestígio no mundo, é pródigo em mazelas de gestão doméstica. Que ao menos se assegurem embates justos e autênticos em campo.

Alexandre de Moraes, o censor

O Estado de S. Paulo

Decisão do ministro mandando retirar manifesto do Telegram fere a liberdade de expressão e contraria o próprio projeto de regulação das redes. O debate é e deve continuar a ser livre

Com urgência, o País precisa de uma lei que reconfigure os limites e as responsabilidades das plataformas digitais. A experiência dos últimos anos mostrou que o marco legal vigente é insuficiente para prover um ambiente virtual que respeite as liberdades e os direitos de todos os cidadãos. O cenário atual é de desequilíbrio: as plataformas desfrutam de muitos direitos, mas têm pouquíssimos deveres. Além do mais, o fenômeno não é uma exclusividade nacional. Há, no mundo inteiro, a percepção da necessidade de aperfeiçoar a regulação das redes. E, ainda que venha causando muito barulho, o tema não deveria a rigor estranhar ninguém: novos setores da economia e novas realidades sociais sempre demandam ajustes e reformas na legislação.

Na tarefa de prover um marco jurídico adequado para o mundo digital, existe um ponto politicamente importante. Não basta que a proposta de lei seja equilibrada e tecnicamente bem redigida. A tramitação no Legislativo deve proporcionar à população a segurança de que a nova regulação não reduzirá a liberdade de expressão. De forma concreta, não deve pairar dúvida de que a nova lei não criará nenhum censor da verdade, por parte do governo ou de quem quer que seja. Nesse sentido, o texto do Projeto de Lei (PL) 2.630/2020 é muito prudente, assegurando à sociedade o direito de debater livremente as ideias.

O debate público sobre o PL 2.630/2020 vem sendo, no entanto, enormemente dificultado pela atuação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Repetindo o que fez no início do mês, quando determinou a exclusão de publicações contrárias ao PL 2.630/2020, Alexandre de Moraes expediu, na quarta-feira passada, ordem para que o Telegram retirasse as mensagens críticas ao projeto que foram enviadas aos usuários do aplicativo. O manifesto do Telegram é profundamente equivocado (ver editorial Noção infame de democracia, de 11/5/2023), mas isso não autoriza que um juiz ordene sua exclusão. Não é assim que funciona no Estado Democrático de Direito.

Não é de hoje que Alexandre de Moraes manifesta uma compreensão expandida de suas competências e poderes. Em abril de 2019, no mesmo Inquérito 4.781/DF em que agora proferiu decisão arbitrando o debate público sobre projeto de lei, ele expediu ordem de censura contra a revista Crusoé. Na ocasião, lembrou-se neste espaço que, no regime democrático, a informação é livre. “Não cabe à Justiça determinar o que é e o que não é verdadeiro, ordenando retirar – ordenando censurar, repita-se – o que considera que não corresponde aos fatos” (ver editorial O STF decreta censura , de 17/4/2019).

No episódio de 2019, Alexandre de Moraes reconheceu rapidamente seu erro e levantou a ordem de censura. Foi uma decisão corajosa, que fortaleceu a autoridade do STF, ao mostrar que a Corte não tinha compromisso com o erro. Infelizmente, no entanto, parece que o ministro voltou a sucumbir à pretensão de definir o que pode e o que não pode ser dito.

“A mensagem enviada pelo Telegram tipifica flagrante e ilícita desinformação atentatória ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à democracia brasileira, pois, fraudulentamente, distorceu a discussão e os debates sobre a regulação dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada”, disse o ministro na quarta-feira, como justificativa para determinar a exclusão do manifesto do Telegram. Ora, suas atribuições jurisdicionais não o autorizam a definir o que é ou não é desinformação, tampouco a dizer se determinado argumento distorce a discussão pública – o que está na esfera de debate da sociedade, e não na alçada de um juiz ou de qualquer outro funcionário público. O Estado tem de respeitar o espaço livre de discussão da sociedade.

O mais estranho é que a decisão de Alexandre de Moraes afronta até mesmo o PL 2.630/2020. Estivesse já vigente, o novo marco só corroboraria a ilegalidade da ordem do ministro. O colegiado do STF tem de reagir prontamente. Censura no debate público é intolerável.

O Congresso cumpre seu papel

O Estado de S. Paulo

Parlamentares têm mostrado disposição para corrigir deficiências do projeto de arcabouço fiscal. Como apresentado, o texto é um simulacro de controle das contas públicas

Um grupo bastante amplo de deputados, tanto do ponto de vista numérico como ideológico, tem mostrado firme disposição para corrigir as deficiências fundamentais do Projeto de Lei Complementar (PLC) 93/2023, que trata do novo arcabouço fiscal. O País só tem a ganhar com o Congresso cumprindo o seu papel de aprimorar o texto encaminhado pelo Poder Executivo. O que o governo enviou à Câmara dos Deputados, a bem da verdade, é um simulacro de arcabouço fiscal, não um sistema de controle de gastos feito para valer.

O relator do PLC 93/2023 na Câmara, o deputado Cláudio Cajado (PPBA), se reuniu há poucos dias com os representantes de nove bancadas partidárias. Juntas, elas correspondem a quase 80% do plenário da Casa. Esse grupo, segundo consta, pediu que o relatório final incorpore as sanções e gatilhos mais arrojados para o corte de despesas em caso de descumprimento das regras fiscais que foram ignorados de propósito pelo governo.

Note-se que os parlamentares não estão pedindo nada além do minimamente razoável em se tratando de um marco legal que se presta a equilibrar as contas públicas. Eles pedem, por exemplo, que o texto impeça o governo de conceder aumento salarial a servidores acima da inflação em caso de estouro das despesas. Pedem que não se realizem concursos públicos ou que se concedam benefícios fiscais a empresas quando as contas estiverem no vermelho. Outra demanda sensata é a de que o governo se comprometa com o cumprimento do objetivo fiscal por meio do bloqueio de despesas. No texto original, o chamado contingenciamento não é obrigatório.

Como se vê, não são pedidos extravagantes; são a essência de um arcabouço fiscal digno do nome.

Além do problema estrutural do PLC 93/2023, qual seja, a dependência excessiva do aumento das receitas para o equilíbrio fiscal, deixando o controle das despesas praticamente intocado, o projeto, caso seja aprovado como foi elaborado pelos Ministérios da Fazenda e do Planejamento, ainda ferirá de morte a Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O texto exime o presidente da República, entre outros agentes públicos, de quaisquer sanções jurídicas e políticas em caso de descumprimento das regras definidas pelo próprio projeto, o que é um despautério (ver editorial A LRF não é optativa, 22/4/2023).

Talvez, vá saber, essa conveniente imprevisão de sanções decorra do trauma dos petistas com a justa cassação de Dilma Rousseff por suas notórias pedaladas fiscais. Mas, no Congresso, essa frouxidão não pode prosperar. Definir metas sem prever mecanismos de engajamento ao seu cumprimento significa, na prática, não ter meta alguma.

O governo, evidentemente, fará de tudo para manter o projeto tal como está. O líder do PT na Câmara, Zeca

Dirceu (PR), disse ao Estadão que vem “pedindo diariamente” ao relator do PLC 93/2023 que “não torne o texto mais rígido do que ele já é”. Cajado, contudo, “evita responder”, segundo o petista. Chega a soar como pilhéria classificar como “rígido” um marco legal que não prevê sanção alguma aos que, eventualmente, vierem a descumpri-lo.

O Congresso tem muito trabalho a fazer para dotar o País de um arcabouço fiscal crível e, principalmente, coadunado com desafios nacionais que só haverão de ser superados a partir de um Orçamento público equilibrado, entre outros fatores. O texto do arcabouço fiscal encaminhado pelos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, em que pesem as suas deficiências, não é para ser jogado fora de todo. Os parlamentares decerto não precisam reescrevê-lo; precisam aprimorá-lo.

Dada a disposição do Congresso e, é importante ressaltar, dos próprios ministros Haddad e Tebet para construir a várias mãos o novo arcabouço fiscal, inclusive tocando em questões sensíveis como os gastos tributários, há uma avenida de melhorias a ser trilhada. Quanto mais firme for o engajamento do Executivo e do Legislativo nesse esforço concentrado, em especial para eliminar as exceções que só enfraquecem o espírito do PLC 93/2023, tanto melhor será para o Brasil.

Política econômica no tapetão

O Estado de S. Paulo

União consegue vitórias judiciais importantes, mas não é isso que faz um bom ajuste fiscal

Está rendendo frutos a estratégia da União de buscar recursos para tentar realizar o ajuste fiscal por meio de vitórias em processos judiciais e medidas aprovadas pelo Congresso. Mas o fato de o governo contar com essa forma de aumentar sua receita expõe a falta de uma política econômica sustentável no médio e longo prazos.

Desde que enviou ao Congresso o arcabouço fiscal, em abril, tornou-se explícita a intenção da equipe econômica de basear o equilíbrio das contas no dinheiro que entrasse nos seus cofres como resultado de julgamentos ou votações que envolvem questões tributárias. Um levantamento de decisões nesse sentido anunciadas nas últimas semanas indica que as vitórias do governo federal resultariam numa receita extra de mais de R$ 120 bilhões.

Esse valor é, potencialmente, o que os contribuintes teriam que pagar à Receita Federal com os novos entendimentos em disputas nos tribunais ou decisões de congressistas. Sabe-se, porém, que é longo o caminho para que um novo entendimento tributário resulte efetivamente na entrada de dinheiro nos cofres públicos – em alguns casos, as medidas ainda podem ser contestadas ou é preciso esperar para o detalhamento das normas. E sempre pode se imaginar que especialistas em planejamento tributário podem encontrar brechas nos detalhes das regras.

Os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, afirmaram que algo como R$ 120 bilhões seria a receita adicional necessária para fechar as contas deste ano. O arcabouço está calçado mais em aumento das receitas do que em cortes de despesas – e esse é um dos pontos do projeto mais criticados por economistas que defendem rigor fiscal.

Na quarta-feira, o Senado regulamentou o pagamento de impostos sobre as transações entre empresas no Brasil e no exterior, que pode resultar num ganho fiscal de até R$ 23 bilhões. Mais significativa foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de exigir que as empresas paguem impostos federais nos casos de benefícios fiscais concedidos pelos Estados. Esse processo pode elevar a arrecadação da União em R$ 90 bilhões. Também no STJ, duas outras decisões atenderam aos pedidos da União em casos envolvendo servidores do Judiciário e do Ministério Público e pagamentos de tributos por empresas que seguem o regime do lucro presumido.

Não é ilegal ou impróprio que a União busque ganhar processos que possam acarretar em ganhos fiscais. Num país em que a judicialização, mesmo de pequenas causas, aumentou muito, especialistas calculam que o Supremo poderá julgar, neste ano, uma pauta tributária em que os principais processos teriam um impacto de mais de R$ 600 bilhões neste e nos próximos anos.

A escolha desse caminho não deveria, no entanto, substituir uma política econômica consistente, que sobreviva por anos e que não dependa dos humores dos juízes ou de congressistas. No Brasil, não é infrequente que decisões judiciais, mesmo aquelas tomadas pelas Cortes superiores, sejam reformadas depois de algum tempo. É temerário, portanto, sustentar o ajuste fiscal numa aposta repleta de riscos.

Congresso pode aprimorar o novo regime fiscal

Valor Econômico

Se o crescimento for baixo, de 2%, o superávit de 1% do PIB só será suficiente se a taxa de juros real cair para perto de 3%

O novo regime fiscal será ao que tudo indica modificado pelo relator, o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), incluindo mecanismos de revisão que possam dar condições para que a meta anual de resultados seja atingida. O projeto de lei complementar enviado pelo governo extinguiu a avaliação bimestral, que poderia ou não ser seguida de contingenciamento de despesas caso houvesse desvios da rota, e tornou-a trimestral, dispensando contenção de despesas preventiva. É um aprimoramento em um projeto que tem um defeito sério: depende demais do aumento de receitas e elas estão superestimadas, segundo avaliação da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados.

Cajado, próximo do presidente da Câmara, Arthur Lira, cogita reinstituir mecanismos mais firmes de correção das metas, se elas não forem cumpridas. No projeto do governo, nesse caso, as despesas no exercício seguinte seriam reduzidas a 50% da variação real das receitas. O relator pode acrescentar a proibição de reajustes salariais do funcionalismo e de concessão de novos benefícios fiscais. A volta do contingenciamento quando o cumprimento da meta correr risco no decorrer do exercício fiscal é outra probabilidade.

O movimento corretivo do projeto não é o único em andamento. O PT e seus aliados à esquerda pretendem impedir mudanças “liberais” como as aventadas por Cajado e, por incrível que pareça, apresentar propostas que mudam o projeto do governo petista. Entre as mudanças estariam a exclusão do Bolsa Família do limite orçamentário e a ampliação do limite máximo de variação real das despesas, de 2,5% para 4,5% - ou seja, a média do período de 1988 a 2022. O limite de despesas de 70% da variação real seria elevado para 90% (Folha de S. Paulo, ontem). Em suma, o PT, se levar à frente a iniciativa, ajudaria a destruir a essência de um projeto vital para o governo do PT.

Ainda que o governo consiga aprovar o novo regime como ele está, a relação entre a dívida bruta e o PIB não se aproximará da estabilização e se situará bem acima da projeção original de 76,6% do PIB em 2026. Segundo o relatório da consultoria, “ausentes modificações no sistema de referência da receita que possam acarretar aumentos na arrecadação federal, a probabilidade de realização de valores na magnitude esperada pelo Poder Executivo, no próximo triênio, é próxima de 35%”. A previsão de receitas líquidas feitas pelo governo é mais otimista que as de mercado.

Para obter déficit primário zero no ano que vem será necessário um aumento de receita líquida de R$ 100 bilhões e manter seu nível em 18,6% do PIB.

As projeções de despesas, por outro lado, são críveis, embora haja reparos feitos pela consultoria legislativa. Não há previsão de concessão de reajuste real do salário mínimo, que afeta praticamente a metade das despesas que estão sujeitas ao teto de gastos.

Não se justifica, por outro lado, a exclusão dos recursos destinados ao pagamento do piso de enfermagem, uma despesa primária obrigatória da União, do teto. Isso “cria precedente para que outras despesas de mesma natureza, ainda que meritórias, sejam também excluídas” no futuro. Além disso, a redução de 70% para 50% da variação das despesas em relação a receitas líquidas, em caso de não cumprimento da meta de resultado primário, pode, segundo o relatório, ser insuficiente para a correção de rota nos primeiros anos de vigência do novo regime fiscal. Por fim, ao não classificar precatórios como despesa orçamentária no projeto de lei, contraria o procedimento habitual e “abre brecha para eventos semelhantes poderem se valer do mesmo argumento”.

O relatório é de clareza lapidar em suas premissas básicas: “Quanto maior é a dívida e a taxa real de juros, e quanto menor o crescimento econômico, maior será o superávit necessário para estabilizar o crescimento da dívida”. A distância entre a projeção do governo e a do mercado é enorme para a relação dívida-PIB em 2026: 87,5% ante 76,6%. Os técnicos fizeram uma estimativa intermediária, supondo que o resultado primário se dará no piso da banda de variação, com superávit a partir de 2025. Nessa condição, a relação dívida-PIB seria de 82,3%, quase 6 pontos percentuais acima da projeção oficial. Com um agravante: ela “exige forte compressão das despesas primárias discricionárias”, o que pode afetar a viabilidade do regime.

Mais elucidativo é considerar como crescimento e juros se compõem para viabilizar ou não a estabilização da dívida em 76% do PIB. Com juro real de 2% e crescimento de 1,5%, um superávit de 0,4% faria o serviço. Com juro real de 4%, mais próximo da taxa neutra, o superávit teria de ser quase 5 vezes maior, de 1,9%. Com crescimento de 2,5% ou 3% e juro real de 2%, o governo poderia ter até pequenos déficits (-0,4% e -0,8%). Com juros de 4% ainda, o superávit primário proposto, de 1% a partir de 2026, somente estabilizaria a dívida a partir daí caso o PIB avance 2,5% ou mais. Se o crescimento for baixo, de 2%, o superávit de 1% do PIB só será suficiente se a taxa de juros real cair para perto de 3%.

 

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