segunda-feira, 29 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Planalto tenta reagir para reparar danos no Ambiente

Valor Econômico

Presidente Lula prometeu vetar os trechos da lei que atentam contra a Mata Atlântica

O governo começou a reagir aos reveses impostos pela bancada ruralista e legendas do Centrão na MP que reorganiza os ministérios e que pode esvaziar os dois mais simbólicos: Meio Ambiente e o dos Povos Indígenas. A luta contra o aquecimento global é uma cruzada mundial, ocupa posição central na reorganização produtiva e no impulso a novas tecnologias. A Amazônia tem papel central, não só por sua função na regulação do clima do planeta e sua incrível biodiversidade, mas também porque ela abriga os que nela vivem desde o princípio, os povos indígenas. A tragédia da desnutrição dos yanomamis é resultado da mesma lógica da que comanda a destruição impiedosa das florestas. As duas pastas sob risco de enfraquecimento têm missões literalmente vitais.

A Comissão Mista do Congresso aprovou por esmagadora maioria - com comemoração da bancada petista no Senado - uma reorganização que retira atribuições fundamentais da pasta de Marina Silva, como o Cadastro Ambiental Rural, entregue ao Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, cujos objetivos nunca passaram remotamente perto da nova tarefa que colocam em suas mãos. Além disso, saem de sua guarida a política de recursos hídricos e resíduos sólidos.

O CAR é essencial para orientar o combate ao desmatamento, identificar agressões ao (e agressores do) ambiente e mapear as necessidades de recuperação de áreas degradadas, entre outras. A batalha da bancada ruralista contra o Cadastro é antiga e a adesão ao programa nele baseado, o Programa de Recuperação Ambiental, foi adiado mais um vez por iniciativa do governo Bolsonaro, que emitiu a MP 1150 para esse fim. A Câmara dos Deputados nela incluiu dispositivos que permitem a devastação ampla e absoluta do que resta da Mata Atlântica, o Senado os retirou, mas eles foram reintroduzidos pelos deputados em votação final.

A mudança nas leis que protegem a Mata é um trabalho de especialistas em destruição e nada tem a ver com ideologia, mas com dinheiro. Dois terços da bancada petista na Câmara, demonstrando que a bandeira ecológica da legenda não é levada a sério, votaram a favor de uma legislação escandalosa.

No ano passado foram devastados 17.163 ha da Mata Atlântica, estreitando o cerco à flora e fauna -um quarto das espécies (2.845) estão ameaçadas de extinção, segundo o SOS Mata Atlântica. Setenta e dois por cento dos brasileiros vivem nela ou ao seu redor e a especulação imobiliária é fonte de pressão permanente à integridade dos 24% de florestas originais remanescentes.

Os dispositivos incluídos pelos deputados permitem destruir mais mata nativa e até a que está em recuperação. Um deles chega a ponto de ditar que “a vegetação secundária em estágio médio de regeneração poderá ser derrubada para fins de utilidade pública mesmo quando houver alternativa técnica ou de outro local para o empreendimento”. Quando em área municipal, é dispensada a anuência prévia de orgão ambiental para seu corte.

As faixas de proteção aos rios urbanos serão abolidas, pois “zonas de amortecimento e corredores ecológicos em unidades de conservação, quando situadas em áreas urbanas definidas por lei municipal, passam a ser dispensados”. Esse manual de aniquilação do ambiente, se transformado em lei poderá ser replicado em outras áreas do país. A criação de uma terra sem lei impulsiona a ação de garimpeiros, traficantes de drogas, madeireiras clandestinas, contrabandistas e outros espécimes do submundo do crime que invadem terras indígenas na Amazônia.

O governo lavou as mãos para a ofensiva deslanchada por todos os lados pelo Centrão, desdenhando inexplicavelmente as consequências políticas domésticas e externas. Pelo lado do prêmio, o país deixa de contar, pelo com o desmatamento, com os créditos de carbono que receberia para evitá-lo - e é muito dinheiro que está em jogo. Pelo lado da punição, a União Europeia acabou de aprovar nova lei ambiental que pune a importação de produtos agropecuários provenientes de zonas desmatadas e outros países tendem a seguir o mesmo caminho. O estrago político pode ser muito grande. As credenciais do Brasil como protagonista de primeira linha na defesa ambiental, propagandeada pelo governo, pode se dissolver logo diante dos golpes da realidade.

O presidente Lula prometeu vetar os trechos da lei que atentam contra a Mata Atlântica e orientou seu núcleo político a manobrar no Congresso para que o desenho original consubstanciado na MP, pelo menos para os dois ministérios, seja mantido o mais intacto possível. O núcleo político se encarregará da tarefa, mas não parece estar muito convencido do estrago que ajudou a patrocinar.

Lula faz uma urgente operação de redução de danos necessária em si, mas também para impedir que a frustração pelos golpes sofridos pela ministra Marina Silva, um símbolo do ambientalismo brasileiro, a levem a abandonar o governo. Sua saída seria um sinal de que pouca coisa melhorou após a devastadora passagem de Bolsonaro pelo poder e de que há riscos de degradação maior.

Juízes deveriam se dar conta dos próprios privilégios

O Globo

São oportunas manifestações dos ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber contra benesses absurdas

São extremamente oportunas as críticas recentes de ministros do Supremo Tribunal Federal à exorbitância que o Estado brasileiro gasta com o Judiciário. Se os próprios juízes da mais alta Corte começam a sentir vergonha dos privilégios inaceitáveis que a magistratura usufrui num país desigual como o Brasil, é sinal de que ainda existe uma chance de algo mudar para melhor.

No julgamento do ex-presidente Fernando Collor, o ministro Gilmar Mendes sugeriu o fim das férias de 60 dias para juízes, uma das vantagens mais descabidas — e mais defendidas — da categoria. Enquanto dezenas de milhões de brasileiros (inclusive funcionários públicos) gozam um mês de descanso, juízes desfrutam dois. A regalia permite que aumentem o próprio salário vendendo parte dos dias, sob a alegação de sobrecarga de trabalho.

Outra manifestação contra as benesses do Judiciário veio da ministra Rosa Weber, presidente do STF. Ela lamentou, no desfecho do julgamento de um juiz acusado de assédio sexual, que a pena disciplinar máxima dos juízes seja a aposentadoria compulsória. “Lamento que nossa legislação assegure vencimentos ou subsídios proporcionais ao tempo de serviço”, afirmou. Essa “punição”, prevista na Lei Orgânica da Magistratura em vigor desde 1979, é defendida com afinco pela corporação e seus aliados em Brasília.

A última investida do lobby da toga é a tentativa reiterada de aprovar no Congresso uma emenda à Constituição restaurando a promoção automática a cada quinquênio que vigorava até 2006. Se prosperar, será uma ignomínia sem igual. Juízes e procuradores já são as categorias mais privilegiadas do funcionalismo, cujo salário médio as coloca entre os 2% de maior renda no Brasil. “A partir dos anos 1990, as remunerações do Judiciário assumem trajetória de aumento bem superior aos demais Poderes”, afirma estudo do Ipea que esmiuçou as regalias em 2019.

Em 24 estados, só o vale-refeição de juízes supera o salário mínimo. Embora seus vencimentos sejam legalmente o teto do funcionalismo, os magistrados são os primeiros a rompê-lo. Mais de 8 mil já receberam remuneração igual ou superior a R$ 100 mil pelo menos uma vez desde 2017. Eles são um terço dos que recebem supersalários acima do teto constitucional. São inúmeras as exceções criadas para contornar o limite. Não são computados, para efeito do teto, os auxílios transporte, moradia, refeição, paletó e saúde, 13° salário, serviços extraordinários, pagamento de férias atrasadas etc.

Por desfrutar tais privilégios, cada juiz custou aos cofres públicos mais de R$ 60 mil mensais em 2021, segundo o último relatório do Conselho Nacional de Justiça. O Brasil tem a Justiça mais cara do mundo, de acordo com estudo dos pesquisadores Luciano Da Ros e Matthew Taylor. Judiciário e Ministério Público consomem anualmente 1,8% do PIB (só o Judiciário custou 1,2% do PIB em 2021). Isso equivale a 11 vezes o custo espanhol, dez vezes o argentino e nove vezes o americano.

Não se põe em questão o trabalho do Judiciário, mas seu custo estratosférico, inflado por regalias como as férias de 60 dias ou a “punição” com aposentadoria compulsória. Por isso é mais que bem-vinda a reação dos ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber. Que sirvam para chamar a atenção para distorções que já deveriam ter sido corrigidas faz tempo — e são usadas contra o Judiciário pelos inimigos da democracia.

Subsidiar empreiteiros para retomar concessão de estradas não faz sentido

O Globo

Governo Lula repete erro da gestão Dilma ao querer usar dinheiro do contribuinte para baixar pedágio

Obrigado a arcar com o peso de gastos bilionários em saúde, educação, previdência e milhares de outras despesas, o governo federal anunciou a intenção de investir com empreiteiros na construção de estradas. Pretende subsidiar os pedágios, despejando dinheiro público nas empreiteiras que venham a enfrentar dificuldades em obras que necessitem de mais investimentos. Se elas precisarem, o Tesouro aparecerá para resolver o problema.

A ideia em Brasília para destravar investimentos privados em infraestrutura é garantir às construtoras que os custos mais elevados na abertura de estradas — construção de túneis, pontes e trechos que representem um risco financeiro maior — sejam bancados pelo Tesouro. O plano será aplicado numa carteira de licitações de 20 rodovias, até 2026, negócios que poderão movimentar até R$ 200 bilhões em investimentos, pelos cálculos do secretário executivo do Ministério dos Transportes, George Santoro. O BNDES, disse Santoro ao GLOBO, deverá facilitar o financiamento dos projetos. Quanto à tarifa dos pedágios, adiantou que será “adequada” à realidade de cada região e ao uso da estrada — turismo ou transporte de carga.

O plano do governo, apesar de simples, está errado. Atrair o investimento privado é fundamental para recuperar as estradas brasileiras, a maioria em situação precária. Mas usar o dinheiro do contribuinte para favorecer um meio de transporte baseado em combustível fóssil, que nem todos usarão e de que nem todos se beneficiarão não é a melhor forma de fazer isso. Além de injusto, é um erro econômico.

Pedágio baixo era ideia fixa na gestão Dilma Rousseff. Nas licitações, era item prioritário. Quanto mais baixa fosse a previsão de pedágio, mais chance a empreiteira tinha de ganhar a obra. Depois o negócio se revelava inviável. Tarifas artificialmente reduzidas e movimento aquém do previsto não pagavam a manutenção, nem permitiam o retorno do capital investido pelos empreiteiros e sua margem de lucro. O resultado foi uma Medida Provisória do governo Michel Temer, permitindo a devolução de concessões dentro de regras. No ano passado, o governo enfrentava dificuldades para relicitar seis lotes rodoviários de 4.331 quilômetros que haviam sido devolvidos.

Agora o governo petista volta a insistir em tarifas mais baixas nas novas concessões, usando desta vez o artifício do subsídio. É um contrassenso falar em gastar dinheiro com isso quando o governo já concede mais de R$ 450 bilhões em isenções e benefícios todo ano e precisará revê-los para cumprir as metas agressivas do novo arcabouço fiscal. O ideal é que os projetos de abertura de estradas apresentem custos e expectativas de receitas realistas, para que se defina a tarifa justa de pedágio. Em vez disso, o governo quer mascarar os custo real das obras, pondo os cofres públicos à disposição do empreiteiro e dos usuários das estradas. Não faz sentido.

Erro industrial

Folha de S. Paulo

Governo recicla velhas ideias e argumentos equivocados para subsidiar empresas

Está em formação uma nova edição da aliança entre governo e empresários para ampliar subsídios, com a justificativa de combater a assim chamada desindustrialização —a queda na participação do setor no PIB de 24% em 1980 para pouco mais de 10% hoje.

Em evento recente na Fiesp, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante repetiu argumentos conhecidos em favor do favorecimento oficial à atividade. Segundo sua argumentação, o país precisa de políticas industriais para enfrentar a competitividade asiática e não ser apenas uma fazenda exportadora de produtos primários.

Já há providências em curso, além do despropositado programa para a volta do carro popular. Negocia-se com o Tribunal de Contas da União (TCU) um adiamento na devolução ao Tesouro de recursos recebidos ainda na gestão de Dilma Rousseff (PT).

Ademais, o BNDES novamente disponibilizará dinheiro barato —R$ 20 bilhões— para inovação, empresas exportadoras e investimentos em máquinas.

O diagnóstico e os meios utilizados novamente para tentar reanimar a indústria são equivocados, a começar pela comparação com países asiáticos, que deixa de levar em conta as razões de fundo para a competitividade peculiar deles.

Por lá, o custo de capital é baixo porque a poupança é alta, o que depende de políticas fiscais prudentes.

Há persistentes subsídios à produção, mas eles resultam mais de mecanismos institucionais que limitam o crescimento dos salários abaixo da produtividade do que de aportes diretos do Estado.

É assim que são gerados os saldos exportadores. Tais condições não são todas reproduzíveis no Brasil —e, em relação a várias delas, nem seria desejável que o fossem.

E, a longo prazo, a diferença é principalmente um maciço esforço na educação básica para a formação de mão de obra de qualidade. Não se trata apenas de mais dinheiro, como atestam as medições recentes de ausência de melhoria da qualidade da educação no Brasil nas últimas décadas.

Competitividade, portanto, depende de políticas econômicas e sociais que lidem com todos os elementos estruturais, não de remendos pontuais que beneficiam o lucro de alguns poucos.

Nas condições atuais do país, a reforma tributária, com foco nos impostos incidentes sobre o consumo, seria um bom começo, bem como a abertura econômica e o aumento da poupança pública por meio de uma reforma do Estado.

Sem esses componentes, o mais provável é que a nova rodada de favores não resulte em efeitos palpáveis na economia e apenas deixe mais uma conta para o contribuinte, como sempre ocorreu.

Barbárie no Amazonas

Folha de S. Paulo

PF expõe violação escandalosa de direitos humanos no estado, até contra crianças

Vítimas metralhadas e torturadas, inclusive crianças e adolescentes —a barbárie abarca fatos investigados pela Polícia Federal no Amazonas, que são objeto de relatório concluído em abril deste ano, com indiciamento de altas autoridades do estado. A chacina, ocorrida em agosto de 2020, vitimou comunidades ribeirinhas e indígenas próximas ao rio Abacaxis.

A PF suspeita do envolvimento da cúpula do governo amazonense, incluindo o coronel da Polícia Militar Louismar Bonates, ex-secretário de Segurança Pública, e Ayrton Ferreira do Norte, ex-comandante-geral da PM.

Seja pelo grau do envolvimento das polícias locais, com aparente participação de quase 130 agentes militares e civis, seja pela crueldade chocante, o episódio precisa ser investigado com rigor.

As apurações até o momento apontam para vingança pessoal e conivência institucional. O caso teve início com a entrada irregular de um secretário estadual em terra protegida da União para a pesca esportiva. A partir daí, a situação escalou a ponto de a PM deflagrar uma operação que teria envolvido atos atrozes, incluindo uma longa lista de métodos de tortura.

Nos últimos anos, houve uma alta expressiva de violência contra povos indígenas. Entre 2018 e 2021, aumentaram em 180% os casos de invasão e exploração ilegal de terras, segundo relatório de 2022 do Conselho Indigenista Missionário, órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

A histórica violência contra os povos originários, combinada com teias de impunidade, serve de palco para o caso no Amazonas.

A gravidade do episódio é tamanha que faltam adjetivos para enquadrá-lo. Para além das condutas individuais dos policiais, que precisam ser apuradas, é praticamente impossível que operação dessa natureza não tenha sido, ao menos, acobertada pelas autoridades.

Cabe aos órgãos de proteção de testemunhas dar apoio às vítimas, e às instituições de combate à tortura, enfraquecidas sob Jair Bolsonaro (PL), auxiliar nas investigações para garantir, além da punição, que episódios como esse jamais se repitam.

A médio e longo prazos, fortalecer mecanismos internos e externos de controle das polícias, como corregedoria, ouvidorias e Ministério Público, bem como proteger terras indígenas, são condições sine qua non para que cessem infrações atrozes aos direitos humanos.

O limite das terras indígenas é claro

O Estado de S. Paulo

A Constituição estabeleceu um parâmetro para a demarcação, e a lei tem soluções para conflitos entre indígenas e proprietários. Ao Judiciário cabe só aplicar a vontade do legislador

A Câmara aprovou um requerimento de urgência para um projeto de lei que define o chamado “marco temporal” para demarcação de terras indígenas. O mérito deve ser votado nesta semana, mas, a rigor, é simbólico, porque redundante: o projeto só reafirma a determinação constitucional, consolidada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que restringe a demarcação às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da Constituição. Mas o símbolo se presta a transmitir uma mensagem ao STF, que julgará no dia 7 de junho um litígio cujo resultado pode reverter sua própria jurisprudência: o Legislativo não aceitará passivamente que a Corte declare inconstitucional uma norma da Constituição.

Em seu artigo 231, a Carta determina que “são reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Em 2009, no âmbito do julgamento de uma disputa sobre a Reserva Raposa Serra do Sol, o STF definiu as diretrizes a serem seguidas nos processos de demarcação. Entre elas, a Corte acrescentou uma justa e necessária elucidação: poderiam ser também reconhecidos como territórios indígenas os que estavam, em 1988, em conflito ou contencioso.

Agora, o STF julgará um recurso da Funai contra uma ação de reintegração de posse movida pelo Estado de Santa Catarina contra a comunidade indígena Xokleng. Como o caso tem repercussão geral, a tese firmada passaria a valer para todas as discussões a respeito das demarcações.

A rigor, sem o parâmetro temporal, o Brasil inteiro se torna potencial área indígena. “Copacabana certamente teve índios, em algum momento”, disse o ministro Gilmar Mendes ao refutar um parecer contrário ao marco em um julgamento de 2014. Essa reductio ad absurdum ganha ares de plausibilidade quando se considera a posição do relator do processo que põe o marco na berlinda, Edson Fachin: ao invés do critério temporal, o elemento definidor seria um “laudo antropológico” da Funai atestando a ocupação “tradicional”.

Sob o marco temporal já estão garantidos aos 500 mil indígenas (0,2% da população) 14% do território nacional, principalmente no Norte e no Nordeste. As áreas reivindicadas em estudo correspondem a mais 13,7% do território, principalmente no Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

São regiões onde já estão consolidados intensa atividade agrícola e mesmo centros urbanos. Em parte dessas terras, há disputas entre indígenas e indígenas. Mas, na esmagadora maioria, os proprietários (muitos deles indígenas aculturados) têm títulos de propriedade reconhecidos pelo Estado que remontam há décadas. A prevalecer a tese de Fachin, a Funai teria poder discricionário de convertê-las em reservas e expropriar seus proprietários.

Isso não significa que não haja pretensão legítima dos índios a parte dessas terras. Mas não se corrige uma injustiça com outra. Se há um conflito entre os direitos originários dos indígenas e os outorgados aos proprietários rurais, o Estado pode solucionar o problema por ele mesmo criado, comprando ou desapropriando as terras – mediante a indenização dos proprietários conforme o valor de mercado, incluindo benfeitorias e a terra nua – para transformá-las em reservas.

Se já há dificuldades em relação às terras em disputa em 1988, imaginemse todas as outras que poderiam se criar para novas terras mediante um “laudo antropológico” da Funai.

Não se nega que o País tem uma “dívida histórica” para com os indígenas, mas a quitação dessa dívida passa muito mais por prover assistência social e infraestrutura do que por terras. No que diz respeito a elas, a solução foi dada pela Assembleia Constituinte. A lei tem solução para conflitos já existentes à época, como a Lei 4.132/62, que define os casos de desapropriação por interesse social. O fato é que não cabe ao STF legislar. Uma revogação do marco temporal não só extrapolaria suas competências, como inauguraria um drama interminável de insegurança jurídica, perdas econômicas e violência.

A rocambolesca agonia da Lava Jato

O Estado de S. Paulo

Antes ermida da esperança nacional, a operação ganha as manchetes hoje mais pelas confusões envolvendo seus integrantes do que por suas eventuais virtudes, num final melancólico

O roteiro da agonia da Lava Jato é digno de uma novela de baixo orçamento. Veja-se o que ocorre agora na 13.ª Vara Federal de Curitiba, que durante o período áureo da operação anticorrupção foi transformada em uma espécie de “Tribunal Oficial do Brasil” e hoje oferece ao País um lastimável show de horrores.

Roga-se ao leitor que preste atenção, para que não se perca pelas curvas dessa história rocambolesca. Até outro dia, a 13.ª Vara Federal estava sob a chefia do juiz Eduardo Appio. Declarado simpatizante do presidente Lula da Silva e crítico da Lava Jato, Appio revogou algumas decisões que Sérgio Moro tomou quando esteve à frente daquele juízo, entre as quais uma ordem de prisão contra Rodrigo Tacla Duran, advogado acusado de ser operador de transações financeiras ilegais da Odebrecht. Tacla Duran, que vive fora do País há alguns anos, acusa Moro e Deltan Dallagnol de terem exigido substancial soma em dinheiro para o livrarem da cadeia. Ou seja, teriam praticado extorsão.

Ao que tudo indica, Appio abusou de seu cargo como titular da 13.ª Vara Federal para fazer tábula rasa da Lava Jato, talvez menos motivado pela correção de vícios processuais e mais pelo desejo de retaliar Moro e Dallagnol, tidos como desafetos, principalmente o hoje senador. Nesse contexto, o destino penal de Tacla Duran passou a ser mero instrumento de uma rixa particular.

Em meados de abril, o desembargador Marcelo Malucelli, do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), anulou o despacho de Appio revogando a prisão de Tacla Duran e ordenou que o advogado fosse preso, tal como Moro havia feito em 2016. Malucelli era o relator dos processos da Lava Jato no TRF-4 até pedir seu afastamento por suspeição após terem vindo a público seus laços com a família Moro. O desembargador é pai do advogado João Eduardo Malucelli, sócio do escritório de advocacia de Moro e da esposa do senador, a deputada federal Rosângela Moro (União-SP), e sogro da filha mais velha do casal, Júlia Wolff Moro.

Com tintas de chanchada, o enredo dessa história passou a flertar com o nonsense após Appio ter sido afastado da 13.ª Vara Federal pelo TRF-4 por suspeita de, pasme o leitor, ter passado um trote para João Eduardo Malucelli a fim de chantageá-lo e, de quebra, constranger seu pai desembargador. Em tudo essa trama avilta os mais elementares princípios republicanos.

Para piorar, Appio foi substituído na 13.ª Vara Federal pela juíza Gabriela Hardt, a mesma que em uma de suas sentenças no âmbito da Lava Jato se mostrou incapaz do cuidado mais comezinho que se espera de um julgador: saber quem está julgando. A magistrada, vale lembrar, tratou como sendo pessoas distintas José Aldemário Pinheiro Filho e “Léo Pinheiro”, apelido pelo qual o ex-presidente da OAS é conhecido.

A mixórdia entre o interesse público e as motivações particulares da chamada República de Curitiba é o retrato mais bem acabado do rebaixamento moral e institucional a que foi submetida a Lava Jato, tanto pelos que a personificaram como purgadores do País como pelos que, a pretexto de saneá-la, a conspurcaram ainda mais.

Tal foi o desserviço prestado por essa turma que hoje delinquentes posam como supostas vítimas dos erros cometidos pela força-tarefa com a maior desfaçatez e levam muitos brasileiros de boa-fé a acreditar que eles possam estar dizendo a verdade.

A Lava Jato, hoje se sabe, padeceu de um terrível vício de origem, o desabrido desrespeito ao princípio do devido processo legal, que selou seu destino. Direitos fundamentais foram solapados pela sanha punitiva e pela agenda política de muitos servidores ligados à operação, principalmente suas duas maiores estrelas. Ao se apropriarem de uma ação oficial do Estado como plataforma de lançamento de seus projetos particulares, esses agentes públicos, a um só tempo, feriram de morte a Lava Jato e decepcionaram muitos brasileiros que depositaram na operação a esperança pelo resgate do princípio fundamental da República, a igualdade de todos perante a lei, do fosso das grandes desilusões nacionais.

Infraestrutura à míngua

O Estado de S. Paulo

Projeção de investimento cresce, mas ainda muito abaixo do nível ideal; iniciativa privada lidera

A iniciativa privada continua liderando os investimentos em infraestrutura e se prevê agora um aumento em 2023 em relação aos valores do ano passado. Pelos cálculos de especialistas, os investimentos chegarão a quase 2% do Produto Interno Bruto (PIB). É um avanço, mas representa apenas a metade do que deveria ser investido. Faltam uma ação mais organizada do governo e crédito acessível.

A tentativa da União de mudar as regras para saneamento e aumentar seu poder na recém-privatizada Eletrobras, além da polêmica em torno das concessionárias dos aeroportos do Galeão, no Rio de Janeiro, e de Viracopos, em São Paulo, não ajuda a dar mais confiança para que se iniciem ou sejam retomadas obras.

Um estudo da consultoria de Cláudio Frischtak mostra que as aplicações em infraestrutura poderão chegar a R$ 204 bilhões neste ano, e 65% delas viriam do setor privado. O maior volume de investimentos deve ser carreado para os setores de energia e de transportes. Como se sabe, a transição energética no Brasil avança mais rapidamente do que em outros países, em grande parte graças aos projetos tocados pela iniciativa privada.

Os valores projetados para os investimentos em infraestrutura neste ano indicam um crescimento de pouco mais de 10% em comparação com 2022. Mesmo com essa expansão, o total a ser investido continuará muito abaixo do necessário para corrigir as deficiências no País. Considera-se que seria preciso aplicar 4% do PIB em obras de infraestrutura para corrigir problemas como a péssima qualidade das nossas estradas de rodagem, que ainda são essenciais para a movimentação dos produtos agrícolas tanto na distribuição para o consumo doméstico como para os portos com destino à exportação. E este é apenas um exemplo entre as muitas deficiências do País.

A incerteza dos empresários para investir foi retratada, mais uma vez, na queda do índice de confiança da construção da FGV, divulgado na sexta-feira, e o segmento que indicou mais problemas foi exatamente o das empresas de infraestrutura, que reportaram piora na carteira de contratos. O acesso ao crédito teve a pior avaliação desde julho do ano passado, segundo o informe da FGV.

Nesse contexto, o que faz o governo? Por enquanto, são muitos os discursos e fartas as promessas de concessão de estradas e outras obras. Depois das experiências desastrosas do passado na busca dos “campeões nacionais”, como eram chamadas as empresas eleitas para receber benesses governamentais, é compreensível o temor de que o governo do presidente Lula da Silva volte àquele padrão de política pública. Mesmo o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, foi cauteloso ao anunciar seu propósito de fazer o banco voltar a crescer – ele disse que sua meta “não é o BNDES após a crise de 2009, que era de 4,3% do PIB”, e sim um “banco de 2% do PIB e que foi menos de 1% nesses últimos anos”.

O que o Brasil precisa para deslanchar investimentos em infraestrutura é seguir o receituário clássico: regras claras nas concessões e espaço para que a iniciativa privada tenha segurança e condições competitivas.

 

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