sexta-feira, 19 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

PEC da Anistia só faz aumentar o desgaste da política

O Globo

Que garantia terá o eleitor de que nos próximos pleitos o Congresso não mandará às favas regras que aprovou?

Sem nenhum constrangimento, parlamentares das mais variadas legendas e inclinações ideológicas aprovaram na terça-feira, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que promove a maior anistia da História recente a partidos que cometeram irregularidades na prestação das contas eleitorais ou que descumpriram as cotas destinadas a aumentar a participação de mulheres e negros nos pleitos.

Ninguém tem o direito de se dizer surpreso com a insólita e oportunista coalizão de apoio à PEC da Anistia, aprovada na CCJ por 45 votos a 10. O arco se estende do líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), ao líder da oposição, Carlos Jordy (PL-RJ), passando por parlamentares de direita, de esquerda e de centro — tudo para livrar as legendas de qualquer mordida nos fartos recursos públicos distribuídos pelos fundos eleitoral e partidário. Apenas o Novo e a federação PSOL-Rede foram contra a proposta.

Não é a primeira vez que os parlamentares resolvem se conceder uma anistia. No ano passado, o Congresso já promulgara outra emenda à Constituição anulando punições para legendas que descumpriram o mínimo de 30% de repasses do fundo para financiar campanhas eleitorais de mulheres. O mau exemplo deveria ter servido para barrar outras iniciativas do tipo. Parece, em vez disso, tê-las perpetuado.

Uma análise do Tribunal Superior Eleitoral sobre gastos partidários em 2017 detectou irregularidades nas prestações de contas e determinou multas de R$ 40 milhões corrigidas pela inflação. Mas a PEC da Anistia tudo perdoa. Põe-se uma pedra em cima do condenável uso de laranjas para fraudar cotas de mulheres, das extravagantes inconsistências nas contas, como o uso de recursos públicos para comprar toneladas de carne, equipamentos para churrasqueira, taças de vinho e até construir piscina. A farra com o dinheiro público, pelo visto, está liberada.

A sociedade tem reagido ao absurdo. Organizações como Instituto Vladimir Herzog, Transparência Partidária e Transparência Eleitoral Brasil torpedearam a PEC. O Instituto Não Aceito Corrupção divulgou nota dizendo que a anistia “rasga a Constituição, estapeia o povo, pisa no Estado Democrático de Direito e nem sequer deveria ser admissível”. Mas os parlamentares não dão ouvidos, estão mais preocupados com seus próprios interesses.

Que garantia o eleitor terá de que nos próximos pleitos as regras votadas pelo próprio Congresso não serão mandadas às favas e de que o dinheiro do contribuinte não será queimado noutras churrasqueiras? Nenhuma. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, alega que as multas fixadas pela Justiça Eleitoral são abusivas, inviabilizam os partidos e deveriam ter apenas valor pedagógico. Ora, se com punição as normas já são desrespeitadas — há sempre a perspectiva de uma anistia —, imagine-se como seria sem.

A proposta ainda precisa passar por Comissão Especial antes de ir a plenário. A despeito de contar com amplo apoio no Congresso, precisa ser barrada. Os partidos deveriam ser responsabilizados pelos atos que cometeram. Do jeito como está, a PEC da Anistia só acentua o descrédito que contribui para aventureiros externos ao universo da política ganharem espaço. O Brasil já sabe bem onde isso pode parar. Da última vez, a democracia resistiu. Nada garante que resistirá da próxima.

Dissolução de Parlamento no Equador traz mau augúrio para América Latina

O Globo

É alto o risco de crise constitucional, com protestos nas ruas e paralisia econômica. Democracia está em risco

Num continente conhecido pela volatilidade política, o Equador é candidato a se tornar o maior foco de instabilidade. Na quarta-feira, o presidente de centro-direita, Guillermo Lasso, foi o primeiro na História a acionar um dispositivo constitucional conhecido como “morte cruzada”, que lhe permite dissolver o Parlamento e governar por decreto durante seis meses. Serão convocadas eleições gerais para o final desse período. Antes, porém, é considerável o risco de crise constitucional, com embate contínuo entre Executivo e Judiciário, de agravamento da crise política com protestos de rua e de paralisia econômica. Países da região, o Brasil entre eles, devem acompanhar atentamente os desdobramentos.

Lasso optou pela morte cruzada para interromper um processo de impeachment com acusações de corrupção que avançava veloz no Congresso. Desde que assumiu, há dois anos, teve dificuldade de formar base parlamentar. O atalho pensado para lidar com a dificuldade deu errado. Em fevereiro, foi derrotado num referendo com oito propostas nas áreas de segurança, política e economia. Apesar de ter atingido as metas de vacinação na pandemia e de ter renegociado a dívida com a China, Lasso tem pouco a apresentar como resultado de sua gestão. Sua aprovação está abaixo de 20%.

A crise de segurança pública, uma das maiores preocupações dos eleitores, não foi criada por Lasso nem será resolvida milagrosamente com sua saída. O ano passado foi o mais violento da História do Equador. A taxa de homicídios chegou a 25,5 por 100 mil habitantes, patamar próximo ao do México conflagrado entre as máfias do narcotráfico. O Equador, que antes parecia uma ilha circundada pelo crime organizado, hoje lembra os piores momentos da narcoguerrilha no Peru ou na Colômbia.

A economia tem se recuperado de forma lenta depois da pandemia. A pobreza extrema continua acima do nível de 2019. A desigualdade persiste. É difícil culpar Lasso por tudo, uma vez que ele não conseguiu aprovar sua agenda liberal diante da oposição no Congresso. A origem da falta de dinamismo está, ao contrário, nas políticas protecionistas do passado, que, a exemplo da Venezuela chavista, impediram o Equador de transformar a riqueza do petróleo em desenvolvimento para a população.

Em junho de 2022, movimentos contrários ao presidente tomaram as ruas, com bloqueio de estradas e ocupação de centros produtores de petróleo. Os opositores, que haviam perdido nas urnas fazia pouco mais de um ano, paralisaram o país por mais de duas semanas. Em 2019, o alvo de protestos fora o então presidente Lenín Moreno, que se viu obrigado a temporariamente sair de Quito. É provável que a democracia equatoriana continue refém de grupos organizados que conseguem parar o país com base na violência. As crises recorrentes e a morte cruzada são indícios de que a democracia está em risco no Equador. Não é bom augúrio para a América Latina.

TSE no metaverso

Folha de S. Paulo

Cassação de Dallagnol extrapola Lei da Ficha Limpa e abre precedente perigoso

Em uma decisão que consumiu cerca de um minuto, alcançou a unanimidade e foi comemorada pelo governismo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o registro da candidatura e, por conseguinte, o mandato de deputado federal de Deltan Dallagnol (Podemos-PR).

Mais que a velocidade e a união da corte contra o outrora coordenador da Lava Jato em Curitiba, o que chamou a atenção no julgamento —motivado por representação da federação composta por PT, PC do B e PV e do PMN— foi o seu desfecho, e não por boas razões.

Todos os membros do TSE acompanharam o voto do ministro Benedito Gonçalves, que identificou, na trajetória de Deltan rumo ao mundo da política, elementos suficientes para caracterizar fraude à lei: conduta que aparenta legalidade, mas que, no fundo, objetiva driblar alguma restrição jurídica.

Segundo Gonçalves, Deltan exonerou-se do cargo de procurador da República cinco meses antes do que seria necessário não porque desejaria pavimentar sua estrada até o Congresso, mas com a finalidade de burlar a Lei da Ficha Limpa.

É que a lei, ao listar quem não pode concorrer a cargos eletivos, inclui os membros do Ministério Público "que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar".

Segundo o argumento de Gonçalves, as circunstâncias sugerem que Deltan antecipou sua exoneração a fim de evitar que ao menos 1 dos 15 procedimentos preliminares que existiam contra ele se transformasse, nos meses seguintes, no processo administrativo disciplinar (PAD) referido pela lei.

Não se negue à tese o seu engenho; é possível, até provável, que um dos procedimentos tenha de fato avançado em algum metaverso, para recorrer a um termo da moda.

Mas, neste universo em que vivemos, o Judiciário deveria se guiar não por hipóteses, mas por fatos. E os fatos são simples: não havia nenhum PAD contra Deltan no momento de sua exoneração, e a lei menciona de maneira explícita justamente esse tipo de processo.

Note-se que nada há de arbitrário na escolha do legislador. O PAD foi listado porque, no âmbito da administração pública, sua instauração pressupõe um juízo quanto à gravidade dos fatos. Ir além desse ponto numa decisão judicial representa um atropelo do princípio da separação de Poderes.

Não cabe ao Judiciário criar tantos pretextos para, sob a dupla pena do paternalismo e do arbítrio, cassar direitos políticos dos cidadãos —no caso, de um eleito com a maior votação de seu estado para a Câmara dos Deputados.

As regras, para terem o respeito de todos, não podem se dobrar ao sabor das circunstâncias. Os que hoje aplaudem a aplicação voluntariosa da lei não estão livres de, amanhã, serem alvo dessa mesma sanha punitivista. Deltan que o diga.

Morte cruzada

Folha de S. Paulo

Dissolução do Parlamento no Equador é mais uma ação extrema em região conturbada

Em tempos de polarização política, a América do Sul vive turbulências que atingem governos à esquerda e à direita. O Equador é o mais recente exemplo do segundo caso.

Na quarta-feira (17), o presidente Guillermo Lasso dissolveu o Parlamento do país e convocou novas eleições. Além de se tratar de uma decisão extrema, a motivação é deveras questionável. Lasso quis interromper um processo de impeachment movido devido a acusações de desvio de dinheiro.

A medida não é ilegal, apesar de traumática —não à toa, seu apelido é "morte cruzada". Pode ser acionada em três ocasiões: se o Legislativo assumir funções que não são suas, se obstruir o governo de modo injustificado ou em caso de grave crise política e comoção interna. Esta última hipótese foi a alegada pelo presidente.

Assim, Lasso livra-se pela segunda vez de uma cassação. Em junho de 2002, faltaram 12 votos para a aprovação de seu impedimento pela Assembleia Nacional.

Grande parte da oposição deve acatar a decisão, mas o Partido Social Cristão pretende acionar a Corte Constitucional para anular a medida, dado que não haveria crise política ou comoção no país.

Ainda que a morte cruzada seja legal, dissoluções de Casas legislativas, que atentam contra o voto popular, obviamente não são providências triviais. Também era problemática a tentativa de impeachment, que parecia mais impulsionada pela impopularidade de Lasso do que por motivos jurídicos.

Segundo a Constituição equatoriana, o presidente passa agora a governar por decreto por até três meses —prazo para o novo pleito.

No continente, mandatários de esquerda também vivem suas agruras —e nem é preciso mencionar o drama sem paralelo da Venezuela, que há anos vive um caos econômico e humanitário.

No Peru, também para se livrar de uma espécie de impeachment ("moção de vacância") no final do ano passado, o então presidente Pedro Castillo, sem amparo institucional, dissolveu o Congresso e decretou estado de exceção e reestruturação do Judiciário. Contudo parlamentares votaram a moção, Castilho foi preso, e a vice Dina Boluarte assumiu o cargo.

Nos dois países, a radicalização da disputa política pode fragilizar a governança e até a democracia.

Decisão esquisita em tempos estranhos

O Estado de S. Paulo

Cassação de Dallagnol numa sentença juridicamente duvidosa é, afinal, coerente com o espírito da era lavajatista, em que leis e direitos foram atropelados por imperativos messiânicos

Cassação de Dallagnol é, afinal, coerente com o espírito da era lavajatista.

Os sete ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) votaram pela cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) com base na Lei da Ficha Limpa. Apesar de unânime, a decisão é controversa. Isso porque a Lei é incontroversa: ex-magistrados ou procuradores podem se candidatar a menos que tenham sido demitidos em decorrência de processo administrativo ou judicial, ou se exonerado na pendência de processos administrativos disciplinares (PADs). No caso do ex-procurador não havia nem uma coisa nem outra. Ele já fora penalizado em dois PADs, mas com advertência e censura. Quando se exonerou, tramitavam 15 procedimentos, entre reclamações e sindicâncias, mas ainda não convertidos em PADs.

A interpretação de regras de inelegibilidade deve ser restritiva, privilegiando maximamente o gozo do direito fundamental de se candidatar. Por isso, o Ministério Público Eleitoral e o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (por unanimidade) entenderam que a candidatura era limpa.

Ainda assim, o relator no TSE, ministro Benedito Gonçalves, justificou sua decisão alegando “fraude à lei”: a instauração de um ou mais PADs era iminente e ao se exonerar Dallagnol teria se valido de um exercício regular de direito para burlar a finalidade da lei. Num eventual recurso, a Suprema Corte avaliará a legitimidade dessa fundamentação. Mas, mesmo admitindo-se uma interpretação indevidamente extensiva da lei, a decisão não contraria seu espírito.

Para garantir que o Ministério Público cumpra sua missão de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, a Constituição multiplicou suas prerrogativas e lhe conferiu ampla autonomia. Em contrapartida, vedou aos procuradores “exercer atividade político-partidária”. As restrições eletivas regulamentam disposições constitucionais que visam a “proteger a probidade administrativa” e “a legitimidade das eleições” contra “o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

Em alguns casos, os abusos de operadores da Lava Jato restaram demonstrados de jure (vide as anulações de processos julgados por Sérgio Moro por suspeição de motivação política). E, de facto, a politização da operação foi ampla e notória. Tanto Dallagnol quanto Moro (e até a esposa deste) a usaram como trunfo para alavancar suas candidaturas. A operação cujo objetivo era apurar desvios de recursos públicos para fins particulares tornou-se ela mesma instrumento para promover ambições particulares: as carreiras políticas de servidores e seus parentes.

A Lava Jato deixou um inestimável legado ao desbaratar casos escabrosos de corrupção e resgatar a confiança dos brasileiros na igualdade de todos perante a lei. Mas, ao colocarem-se acima da lei para combater a corrupção e abusarem de seus poderes para viabilizar seus projetos políticos e inviabilizar os de adversários, os operadores da Lava Jato traíram esse legado. Ao punir corruptos, a Lava Jato elevou a Justiça; ao justiçar políticos, o lavajatismo a desmoralizou.

O corolário aí está. O messianismo punitivista inflamou os humores anti-instituições que catapultaram o bolsonarismo ao poder. Dallagnol fez seu discurso de desagravo ladeado por essa malta. De sua parte, os petistas hoje no poder, sem disfarçar seus ânimos vingativos e seu próprio messianismo, festejaram a cassação de um representante eleito com mais de 300 mil votos como mais um “inimigo do povo” abatido.

A revolução, como se diz, devora seus filhos. Dallagnol usou e abusou da interpretação extensiva das leis para perseguir políticos, a pretexto de regenerar o País de acordo com suas convicções delirantes. Sua derrocada política – por uma sentença juridicamente duvidosa, cuja unanimidade sugere um ânimo punitivista político – é, ironicamente, um emblema dessa desvirtuação. Que ao menos esse desfecho sirva de advertência a quem confunde política com messianismo e justiça com vingança.

Intermináveis tropeços na educação

O Estado de S. Paulo

Brasil vai muito mal em avaliação de alfabetização de crianças; especialistas reunidos em evento do ‘Estadão’ mostram que o problema se estende até os anos finais do fundamental

A divulgação dos resultados da avaliação internacional Pirls (sigla em inglês de Progress in International Reading Literacy Study) deu um motivo a mais para o País se preocupar com a baixa aprendizagem de seus estudantes. Não que seja novidade o Brasil figurar nas últimas posições de rankings de desempenho educacional, algo que acaba de se repetir. A questão é que o Pirls tem foco em leitura e compreensão de texto por alunos do 4.º ano do ensino fundamental, isto é, por crianças em início da trajetória escolar. E mau desempenho nessa fase, claro, não é bom presságio.

Como noticiou o Estadão, a prova foi aplicada em 2021, no segundo ano da pandemia de covid-19, em 57 países e territórios. Único representante da América Latina, o Brasil participou pela primeira vez e ficou na 52.ª posição, atrás de Kosovo, Omã e Uzbequistão − e distante não só das nações desenvolvidas, mas também da Turquia, a mais bem colocada no grupo de países da parte de baixo da tabela, na qual aparecem o Brasil e os demais países que não lograram atingir sequer a nota média registrada na primeira edição do teste, em 2001.

Por motivos operacionais, alunos de 14 países fizeram a prova quando já haviam iniciado o 5.º ano do ensino fundamental, prejudicando a comparação. Nem isso, porém, alivia o fraco desempenho brasileiro: mesmo considerando unicamente os 43 países e territórios cujos estudantes estavam no 4.º ano do fundamental por ocasião do exame, o Brasil permanece entre os últimos colocados, em 39.º lugar.

Os resultados do Pirls devem ser analisados com redobrada atenção pelas autoridades educacionais. Primeiro, porque revelam graves deficiências de leitura, um obstáculo e tanto para as futuras aprendizagens. A nota média obtida pelas crianças brasileiras indica uma capacidade limitada de compreender textos, com dificuldades para ir além das informações explicitamente enunciadas. Ora, num mundo em que as escolas precisam ensinar os alunos a ler nas entrelinhas, definitivamente isso é mau começo. Não surpreende, então, que o desempenho de cerca de 75% das crianças brasileiras tenha ficado abaixo da média registrada em Israel − país longe do topo do ranking liderado por Cingapura.

Os efeitos deletérios da pandemia sobre a educação, por óbvio, não podem ser ignorados. Menos ainda no Brasil, uma das nações onde as escolas ficaram mais tempo fechadas e onde o ensino remoto, como se sabe, deixou a desejar. O fato de que o Pirls tenha sido aplicado em 2021 joga luz sobre as sequelas desse período − e sobre a necessidade de todos os níveis de governo somarem esforços para reverter esse quadro.

Pensando nisso, o primeiro dia da série de eventos Reconstrução da Educação, uma iniciativa do Estadão e de longa lista de entidades parceiras, debateu a urgência da recomposição das aprendizagens. Como bem lembrou o secretário municipal de Educação do Recife, Fred Amâncio, as deficiências educacionais já existentes foram agravadas pelo ensino remoto. No caso da alfabetização, criou-se uma espécie de efeito cascata: “Crianças de sexto, sétimo, oitavo e até nono ano que não estão plenamente alfabetizadas”, disse Amâncio. Corretamente, ele chamou a atenção para uma agravante: os professores que lecionam nos anos finais do fundamental não são alfabetizadores e estão tendo que lidar com uma situação para a qual não foram preparados.

O cenário é desolador e requer ações urgentes, sob pena de que um contingente ainda maior de jovens conclua o ensino fundamental com graves lacunas na sua formação. Evidentemente, não será a escola de ensino médio que depois conseguirá mudar essa realidade. A propósito, o professor Tiago Bartholo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observou, no evento do Estadão, que as perdas decorrentes da longa suspensão das aulas presenciais afetaram também as crianças da pré-escola, com déficit de cerca de um ano em seu desenvolvimento cognitivo. O atraso educacional cobra respostas emergenciais e duradouras. A menos que o Brasil queira manter seu até aqui interminável pacto com o subdesenvolvimento.

Demanda em alta

O Estado de S. Paulo

Nível de atividade do primeiro trimestre surpreende positivamente, o que pode adiar queda dos juros

As boas notícias sobre o desempenho da economia brasileira neste ano, que surpreenderam os especialistas em projeções, significam, como contraponto, que o tão esperado início do ciclo de redução dos juros continua distante. O custo do crédito para consumidores e empresas tende a permanecer alto por meses a fio, enquanto economistas embarcam em um debate sobre por que a política monetária apertada adotada pelo Banco Central (BC) não está fazendo com que a inflação caia mais rapidamente, como se poderia esperar.

Todos os principais indicadores de atividades do primeiro trimestre, segundo a apuração do IBGE, vieram mais fortes do que se esperava. O exemplo mais recente foi o crescimento do comércio varejista em março, de 0,8%, contra uma previsão diametralmente oposta do mercado financeiro, uma queda de 0,8%. Também vieram promissores os resultados mais recentes da indústria e do setor de serviços.

Com base nesses dados, estão sendo revistas as projeções para o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano. Na terça-feira, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um informe em que se mostra mais otimista, passando a projetar um aumento de 1,2%, acima do 0,9% da previsão anterior. As estimativas dos especialistas do mercado financeiro, recolhidas semanalmente pelo Banco Central para o Boletim Focus, passaram de uma média inferior a 0,8% de expansão econômica, no início de fevereiro, para 1,02%, segundo o levantamento mais recente.

A face complicada desse panorama é o entendimento, pelo Banco Central, de que a inflação está caindo lentamente porque há demanda por bens e serviços, alimentando a pressão sobre os preços. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem batido frequentemente nesta tecla. “Hoje, existem mais componentes de demanda na inflação do que oferta. E as pessoas podem perceber isso. Se você vai nos aeroportos, você vê que o aeroporto voltou a estar cheio. Os bares e restaurantes voltaram a estar cheios”, disse.

No seminário promovido nesta semana pelo BC reunindo autoridades monetárias de vários países e a principal economista do FMI, Gita Gopinath, Campos reiterou que o combate à inflação continua sendo um grande desafio para os bancos centrais, dando a entender, portanto, que não vai abrir mão da sua política monetária de tentar cumprir a meta de inflação o mais rapidamente possível. No seu discurso, Gita Gopinath pregou a necessidade de perseverança no combate à inflação porque, se os índices de preços não caírem agora, essa batalha será mais dura no futuro.

Com essa perspectiva, o cenário mais provável é de juros elevados, que gradualmente devem corroer as atividades econômicas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seus ministros e outras pessoas da equipe econômica vão continuar dando murro em ponta de faca nas críticas ao BC por manter a taxa Selic em 13,75%, das mais elevadas do mundo pela maioria dos critérios. Como este jornal tem defendido, o caminho para crescimento econômico expressivo e duradouro passa pela adoção por Brasília de uma política fiscal responsável e sustentável.

Novo regime fiscal poderá gastar mais do que permite

Valor Econômico

Há indícios de que haverá uma aprovação tranquila do novo regime fiscal pela Câmara, sem sinal de sobressaltos no Senado

O novo regime fiscal proposto pelo governo Lula pretende começar com “pegadinhas” que, se aprovadas pelo Congresso, contribuem para desmoralizá-lo logo de início e reforçam as suspeitas de que ele não será cumprido. O relator do projeto de lei complementar 93, deputado Claudio Cajado, preencheu lacunas importantes da nova estrutura, acrescentando compensações pelo descumprimento das metas que simplesmente não existiam. Atendeu a pedidos do governo, no entanto, ao afrouxar os gastos.

Como informou O Globo (16 de maio), foram incluídos dois expedientes que limitam a austeridade no início de implantação do novo regime. Uma delas é a que estabelece que, independentemente do mecanismo fixado no projeto de lei, as despesas poderão ter avanço real de 2,5% em 2024, o máximo permitido, desobedecendo o preceito de que elas evoluam no máximo a 70% da variação real das receitas. A regra do novo regime estabelece um avanço real de gastos em qualquer circunstância, de 0,6% a 2,5%, mesmo no caso em que haja frustração de receitas e a meta de superávit primário (ou déficit) não seja atingida.

Como a arrecadação subiu bastante de julho de 2021 a junho de 2022 e está desacelerando em função do desaquecimento da economia, o cumprimento das regras indica, segundo cálculos de economistas, que os gastos, na largada do plano fiscal, poderiam crescer algo em torno de 1% acima da inflação.

A justificativa dada pelo relator, reproduzindo palavras dos interlocutores do governo, é a que deveria haver uma compensação pela queda da arrecadação no período abrangido pela nova regra fiscal, de julho de 2022 a junho deste ano, decorrente da desoneração dos combustíveis. O argumento é desarrazoado.

O governo Lula teve a chance de eliminar a desoneração e elevar as receitas seis meses depois, logo que assumiu, mas, por motivos políticos, não o fez em janeiro. Essa foi, aliás, a primeira derrota pública logo na estreia do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Lula prorrogou a desoneração de PIS-Pasep do álcool e da gasolina por 60 dias, mas a manteve por um ano para o diesel, biodiesel, gás de cozinha e gás natural até 31 de dezembro do corrente ano. O governo poderá então gastar mais em 2024 por uma perda de arrecadação que poderia interromper logo no começo do mandato.

Este não foi o único ajuste favorável ao governo aceito pelo relator, aliado e indicado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). O período de cálculo do IPCA, que permitirá determinar o aumento das receitas e dos gastos, foi mudado. Pela proposta governista, seria utilizado o índice já apurado no ano até julho e se estimaria o dos meses restantes. Cajado fez coincidir os prazos da apuração da receita líquida com o da inflação. Caso a inflação seja maior do que a que foi utilizada na confecção do orçamento, o governo poderá realizar gastos correspondentes no decorrer do ano seguinte. Se a inflação for menor, não haverá cortes.

O governo Bolsonaro tentou fazer uma gambiarra para gastar mais, estendendo em 2022, sob o teto de gastos, o período de apuração da inflação, que encerrava em junho, para dezembro. A mesma coisa ocorrerá agora com o orçamento do segundo ano do mandato de Lula. O IPCA deve continuar caindo até junho, quando, em 12 meses, conforme a regra, deverá ficar um pouco abaixo de 4%. Mas, com a saída das deflações de julho, agosto e setembro do índice, ele encerrará o ano bem perto de 6%.

Com os dois mecanismos contemplados pelo relator, o governo Lula poderá gastar mais em 2024, depois de obter de Lira a aprovação da PEC de Transição com aumento de R$ 168 bilhões de despesas. Os cálculos sobre o montante extra variam de R$ 40 bilhões a R$ 80 bilhões. Esse valor incorpora-se ao saldo de despesas que será corrigido no exercício seguinte. O relator argumenta que a Consultoria de Orçamento previa avanço de 3,6% nas receitas, caso não houvesse desoneração. Com ela, haverá alta de 2,9%, o que se traduz em aumento real de despesas de 1,9%. Segundo ele, houve acréscimo de 0,6%, algo como R$ 12 bilhões. Mas o aumento da inflação, de quase dois pontos percentuais, elevará a permissão de despesas em cerca de R$ 40 bilhões.

Os dois “presentes” dados pelo intermediário de Lira ao governo Lula indicam compromisso firme de que haverá uma aprovação tranquila do novo regime fiscal pela Câmara, sem sinal de sobressaltos no Senado.

Cajado, por outro lado, criou amarras no novo regime que o governo preferia não ter. O descumprimento das metas no primeiro ano será seguido de restrições, como proibição de criação de novas despesas obrigatórias, concessão de novos subsídios etc. Se o mesmo ocorrer pela segunda vez, serão proibidos aumentos e reajustes para o funcionalismo.

A licença ampliada para gastar torna mais difícil zerar o déficit em 2024, como previsto no novo regime fiscal. O governo precisava arrumar receitas de mais de R$ 100 bilhões para que isso ocorra e, agora, terá de se virar para conseguir bem mais que isso. O ajuste fiscal proposto, que já parecia feito com má vontade, torna-se menos crível.

 

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