Folha de S. Paulo
Definir os crimes de palavra é a melhor
forma de protegê-la
A liberdade de expressão é constitutiva
da democracia.
Com isso quero dizer que sem liberdade de expressão não há democracia. Para que
possamos exercer de forma livre e consciente nossos direitos políticos, é fundamental
que possamos manifestar nossas opiniões, assim como acessar as informações e
opiniões necessárias para a tomada de decisões políticas autônomas.
O exercício do poder político só é legítimo
quando decorre de escolhas informadas, tomadas por cidadãs e cidadãos livres e
iguais.
A liberdade de expressão serve também a outras finalidades de máxima importância. Sem liberdade de expressão não haveria desenvolvimento científico, econômico ou social, pois a busca da verdade ficaria prejudicada. Como enfatiza John Stuart Mill, mesmo as ideias falsas ou erradas, ao serem contestadas, podem contribuir para a busca da verdade.
A liberdade de expressão é ainda inerente à
ideia de pessoa como ser racional e autônomo. A articulação das nossas
ambições, ideias, concepções de mundo, a partir da interlocução com outras
pessoas que também expressem suas visões de mundo, é indispensável para o pleno
desenvolvimento da personalidade humana. Fora disso, somos rebanho.
Por último, o direito à liberdade de
expressão é fundamental para que possamos viver numa sociedade plural, onde as
pessoas têm crenças distintas e mesmo antagônicas sobre temas fundamentais.
Nesse sentido, a liberdade de expressão é uma herdeira do princípio da
tolerância religiosa, única forma possível de convivência entre pessoas e
grupos que têm concepções que negam validade às crenças mais profundas umas das
outras. Sem que sejamos reciprocamente tolerantes à verdade alheia que nos
ofende, impossível será a vida entre os diferentes.
Por todas essas razões, a liberdade de
expressão recebeu uma proteção especial por parte da Constituição de 1988,
sendo reforçada pelo Supremo Tribunal Federal quando decidiu casos seminais,
como o das biografias não autorizadas e ao declarar inconstitucional a
velha lei
de imprensa.
O recente sequestro da bandeira da
liberdade de expressão por grupos de extrema direita, que vêm empregando essa
franquia democrática de forma abusiva, com a finalidade de atacar a democracia,
difundir informações
falsas contra políticas de saúde —em meio a uma pandemia— ou para
agredir grupos historicamente discriminados, não deve fragilizar o compromisso
de democratas e liberais com a liberdade de expressão. Muito menos permitir que
o regime constitucional de liberdade de expressão seja flexibilizado.
Neste momento em que o Congresso Nacional
está deliberando sobre um novo marco
regulatório das plataformas de comunicação e o Supremo tem à sua
frente diversos casos relacionados ao emprego abusivo da liberdade de
expressão, é preciso ter muita cautela e não se deixar tomar pelas paixões.
A definição precisa de delitos praticados
por meio de palavras ou de imagens, como crimes de incitação de animosidade das
Forças Armadas contra
os Poderes constitucionais, discriminação racial, exploração de pornografia
infantil ou ataques às urnas —durante o período eleitoral—, é, paradoxalmente,
a forma mais segura de proteger a liberdade de expressão, dentro e fora das
redes. À margem dessa moldura estrita estabelecida pelo direito penal e
eleitoral, todo discurso, por mais abjeto, cretino e inverídico que seja, não
deve ser censurado, ainda que passível de regulação.
Passado o momento mais crítico de ameaça à
nossa democracia, é fundamental que as instituições contribuam para que as
águas voltem ao leito do rio.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
O crime tem de ser punido com rigor.
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