sábado, 20 de maio de 2023

Oscar Vilhena Vieira* - A liberdade de expressão é o cerne da democracia

Folha de S. Paulo

Definir os crimes de palavra é a melhor forma de protegê-la

A liberdade de expressão é constitutiva da democracia. Com isso quero dizer que sem liberdade de expressão não há democracia. Para que possamos exercer de forma livre e consciente nossos direitos políticos, é fundamental que possamos manifestar nossas opiniões, assim como acessar as informações e opiniões necessárias para a tomada de decisões políticas autônomas.

O exercício do poder político só é legítimo quando decorre de escolhas informadas, tomadas por cidadãs e cidadãos livres e iguais.

A liberdade de expressão serve também a outras finalidades de máxima importância. Sem liberdade de expressão não haveria desenvolvimento científico, econômico ou social, pois a busca da verdade ficaria prejudicada. Como enfatiza John Stuart Mill, mesmo as ideias falsas ou erradas, ao serem contestadas, podem contribuir para a busca da verdade.

A liberdade de expressão é ainda inerente à ideia de pessoa como ser racional e autônomo. A articulação das nossas ambições, ideias, concepções de mundo, a partir da interlocução com outras pessoas que também expressem suas visões de mundo, é indispensável para o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Fora disso, somos rebanho.

Por último, o direito à liberdade de expressão é fundamental para que possamos viver numa sociedade plural, onde as pessoas têm crenças distintas e mesmo antagônicas sobre temas fundamentais. Nesse sentido, a liberdade de expressão é uma herdeira do princípio da tolerância religiosa, única forma possível de convivência entre pessoas e grupos que têm concepções que negam validade às crenças mais profundas umas das outras. Sem que sejamos reciprocamente tolerantes à verdade alheia que nos ofende, impossível será a vida entre os diferentes.

Por todas essas razões, a liberdade de expressão recebeu uma proteção especial por parte da Constituição de 1988, sendo reforçada pelo Supremo Tribunal Federal quando decidiu casos seminais, como o das biografias não autorizadas e ao declarar inconstitucional a velha lei de imprensa.

O recente sequestro da bandeira da liberdade de expressão por grupos de extrema direita, que vêm empregando essa franquia democrática de forma abusiva, com a finalidade de atacar a democracia, difundir informações falsas contra políticas de saúde —em meio a uma pandemia— ou para agredir grupos historicamente discriminados, não deve fragilizar o compromisso de democratas e liberais com a liberdade de expressão. Muito menos permitir que o regime constitucional de liberdade de expressão seja flexibilizado.

Neste momento em que o Congresso Nacional está deliberando sobre um novo marco regulatório das plataformas de comunicação e o Supremo tem à sua frente diversos casos relacionados ao emprego abusivo da liberdade de expressão, é preciso ter muita cautela e não se deixar tomar pelas paixões.

A definição precisa de delitos praticados por meio de palavras ou de imagens, como crimes de incitação de animosidade das Forças Armadas contra os Poderes constitucionais, discriminação racial, exploração de pornografia infantil ou ataques às urnas —durante o período eleitoral—, é, paradoxalmente, a forma mais segura de proteger a liberdade de expressão, dentro e fora das redes. À margem dessa moldura estrita estabelecida pelo direito penal e eleitoral, todo discurso, por mais abjeto, cretino e inverídico que seja, não deve ser censurado, ainda que passível de regulação.

Passado o momento mais crítico de ameaça à nossa democracia, é fundamental que as instituições contribuam para que as águas voltem ao leito do rio.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)

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