Folha de S. Paulo
'Big techs' escolheram a guerra e terão a responsabilização civil
Com o adiamento sem data da votação do PL das Fake News, as chamadas "big techs" foram à guerra; colaboraram ativamente para submeter as respectivas cúpulas dos três Poderes —cujas sedes foram espetacularmente depredadas no dia 8 de janeiro— a uma humilhação temporária; deram uma demonstração pública de musculatura, evidenciando que detêm instrumentos para tornar influentes mesmo as distorções mais pavorosas, e estabeleceram ou renovaram uma aliança objetiva com extremistas de direita, compartilhando até vocabulário de exceção para depreciar o moderadíssimo texto do deputado Orlando Silva (PC do B-SP). Uns e outros acusaram a criação de um suposto "Ministério da Verdade" —apropriação indevida porque mal lida de "1984", de George Orwell— e o tal "vigilantismo", com sua indefectível inflexão de crítica supostamente progressista. Foi uma vitória de Pirro, como vou mostrar.
Não resisto, antes se seguir, a um chiste.
"Vigilantismo"? Uau! Em dias menos crus, há muitos séculos morais e
éticos, alguém sacaria do sovaco, no tempo em que ostentar livros rendia
flertes de cumplicidade intelectual, com alguma esperança de troca de humores,
um Michel Foucault. E se poderia dizer: "Oh, a paixão dessa gente por
vigiar e punir". Mas esse trem já passou. É do tempo em que se empregava
"chiste". Mesmo alguns grupos que se identificam como
"progressistas" —e não estou contestando a autodeclaração— passaram o
vocalizar a versão das gigantes da internet. Eles necessariamente sairiam
perdendo, asseguraram as donas da bola, em razão da remuneração a empresas
jornalísticas, também prevista no PL 2630.
Já fiz esta observação em todo canto: para
o meu gosto, não se misturariam as coisas. A necessária regulamentação das
plataformas, redes e serviços de "mensageria" —eis um neologismo que
não está nem no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa— é coisa distinta
da tal remuneração. Deveriam estar em PLs distintos. Embora tema menor para as
gigantes, serviu-lhes para ganhar aliados, a meu ver incautos, à esquerda.
Escolha cada um o seu caminho.
A verdade é que a questão
"fulcral" —em dias de "vigilantismo"— é outra. O busílis
está na responsabilização civil das plataformas que abrigam a produção de
terceiros. Sem tal imposição legal, elas se desobrigam, a não ser por critérios
que lhe são próprios e pouco claros, do chamado "dever do cuidado",
seguindo a sua rotina, também a de faturamento, pouco importando se é Gandhi ou
um facinoroso qualquer a gerar engajamento.
Não deixa de ser emblematicamente
contraditório que reivindiquem excluir conteúdos apenas segundo seus
protocolos, mas se lancem numa cruzada contra uma proposta
legislativa. A mensagem: "Conduzimos, não somos
conduzidas; recusamos que o poder público nos diga o que fazer; mas nós lhe
diremos o que não permitimos que faça".
Indague-se: "Mas não podem esses
potentados dizer o que pensam?" Claro! Os indícios, no entanto, de
direcionamento do debate —e o link
publicado pelo Google em sua página inicial de busca é só a
manifestação mais eloquente— desafiam a natureza pública do serviço que
prestam. Volte-se ao ponto: as "big techs" poderiam ter ganhado o
jogo, mesmo perdendo a votação, porque ajudariam a definir, por intermédio de
outras leis, a aplicação dos fundamentos do PL. Mas não. São agora investigadas
nos inquéritos 4781 (das fake news) e 4874 (das milícias digitais), cujo
relator é Alexandre de
Moraes.
A responsabilização civil ou será decidida
pelo Legislativo ou será disciplinada pelo STF, no exercício
pleno de suas prerrogativas. É mandamento constitucional, como sabe qualquer
jurista. O Artigo 19 do Marco Civil (2014), que garante a inimputabilidade
civil a "provedor de aplicações de internet", exceto se descumprir
decisão judicial, é de inconstitucionalidade patente. Eram tempos um tantinho
inocentes, e a coisa foi ficando lá, enquanto algoritmos iam alimentando o
Leviatã monetizado do caos. O dispositivo só não é tão antigo, em termos de
era, como o Foucault debaixo do braço e o chiste.
Entre a responsabilização civil negociada e
a guerra, os candidatos a donos do poder escolheram a guerra. E terão a
responsabilização civil.
Azevedo azedando para as big techs.
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