O Globo
Regras fiscais precisam estar acompanhadas
de compromisso de governantes com as contas públicas e com reformas
As políticas fiscal e monetária se
entrelaçam, mas têm histórias de construção institucional diferentes no Brasil,
com atraso do lado fiscal e maior solidez do lado monetário. Não há sinalização
de mudança desse quadro, em ambos os lados.
A autonomia do Banco Central (BC) não se
resume à aprovação do projeto de lei complementar em 2021. Ainda que um passo essencial,
não é suficiente, pois leis podem ser revogadas, como foi o caso da autonomia
do BC em sua criação, em 1964. A diferença agora é que a lei decorreu de uma
longa construção institucional, desde a redemocratização. Assim, sua reversão é
pouco provável.
Um primeiro passo para autonomia foi acabar com a conta-movimento entre o Banco do Brasil e o BC, o que implicava repasses automáticos de recursos para financiamento de políticas públicas. Era um desenho que não provia o BC de instrumentos para exercer sua função de controle monetário.
O segundo foi a implementação das metas de
inflação, em 1999. O mandato preciso ao BC contribuiu para blindar a
instituição de pressões externas.
O terceiro passo foi a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, que proibiu o BC de financiar a dívida
pública, devendo apenas atuar no mercado secundário para regular a liquidez do
sistema.
Um fator de grande importância foi o
próprio amadurecimento do debate público ao longo das últimas décadas e
especialmente após a experiência do governo Dilma, quando aparentemente houve
pressão sobre o BC para forçar o corte da taxa de juros.
Em que pese a capacidade do presidente da
Câmara de avançar com a matéria, identificando uma janela de oportunidade para
avanço no tema no Congresso, é crucial reconhecer a longa construção
institucional, o que dificulta retrocessos.
A autonomia formal dos bancos centrais não
é garantia de autonomia na prática, pois ela depende do compromisso de
disciplina fiscal de governantes. Isso porque a expansão fiscal descontrolada
afeta o apetite de investidores para financiar o governo, por meio da dívida
pública, o que acaba se traduzindo em busca por outros ativos, como dólar ou
qualquer outro bem que funcione como reserva de valor. Em uma situação extrema,
o BC perde o controle da inflação.
Esse risco diminuiu bastante no Brasil,
exatamente pelo apreço da sociedade à inflação baixa. Mas há o meio do caminho,
com um regime fiscal frágil que reduz a eficácia da política monetária,
exigindo juros mais altos. Ou seja, a autonomia passa por o BC poder contar com
instrumento eficaz para o controle da inflação. Nesse aspecto, há muito a
avançar.
Alguns propõem aperfeiçoamentos no regime
de metas de inflação, abolindo o ano-calendário e utilizando a meta contínua.
Outros, o aumento da meta. São temas secundários, mas que não deveriam avançar
de forma oportunista, para forçar cortes de juros no curto prazo. Um benefício
pequeno ante o custo de arranhar a construção institucional do BC. A agenda
necessária para reduzir os juros é outra, é a agenda fiscal.
Não há a mesma institucionalidade na
política fiscal, apesar dos muitos esforços desde a criação da Secretaria do
Tesouro, em 1986. A regra de ouro da Constituição (o governo não pode se
endividar para pagar despesas correntes) não pegou. A LRF (não pode criar
despesa sem fonte de receita definida) com alguma frequência é violada, se não
formalmente, em seu espírito. Houve muita contabilidade criativa para camuflar
déficits primários.
A regra do teto foi mal gerida na pandemia
e acabou alimentando violações posteriores, com grupos organizados aproveitando
para deixar mais despesas fora do teto. Por essa perspectiva, o arcabouço
fiscal já nasce com credibilidade comprometida.
Regras fiscais precisam estar acompanhadas de
compromisso de governantes com a disciplina fiscal, com reformas. E arrumar as
contas públicas é comparativamente mais difícil diante das pressões de grupos
organizados, que se beneficiam da falta de transparência, governança e de
análise de custo-benefício da ação estatal.
Aqui, qualidade e quantidade se misturam.
Como as políticas públicas pouco entregam, a demanda por recursos é
inesgotável. A solução é complexa e exige perseverança, envolvendo inclusive
reforma administrativa para melhorar a ação estatal. Não é algo que combina com
governos fracos e focados no curto prazo.
Lendo e aprendendo.
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