quarta-feira, 31 de maio de 2023

Zeina Latif - Duas histórias de construção institucional


O Globo

Regras fiscais precisam estar acompanhadas de compromisso de governantes com as contas públicas e com reformas

As políticas fiscal e monetária se entrelaçam, mas têm histórias de construção institucional diferentes no Brasil, com atraso do lado fiscal e maior solidez do lado monetário. Não há sinalização de mudança desse quadro, em ambos os lados.

A autonomia do Banco Central (BC) não se resume à aprovação do projeto de lei complementar em 2021. Ainda que um passo essencial, não é suficiente, pois leis podem ser revogadas, como foi o caso da autonomia do BC em sua criação, em 1964. A diferença agora é que a lei decorreu de uma longa construção institucional, desde a redemocratização. Assim, sua reversão é pouco provável.

Um primeiro passo para autonomia foi acabar com a conta-movimento entre o Banco do Brasil e o BC, o que implicava repasses automáticos de recursos para financiamento de políticas públicas. Era um desenho que não provia o BC de instrumentos para exercer sua função de controle monetário.

O segundo foi a implementação das metas de inflação, em 1999. O mandato preciso ao BC contribuiu para blindar a instituição de pressões externas.

O terceiro passo foi a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, que proibiu o BC de financiar a dívida pública, devendo apenas atuar no mercado secundário para regular a liquidez do sistema.

Um fator de grande importância foi o próprio amadurecimento do debate público ao longo das últimas décadas e especialmente após a experiência do governo Dilma, quando aparentemente houve pressão sobre o BC para forçar o corte da taxa de juros.

Em que pese a capacidade do presidente da Câmara de avançar com a matéria, identificando uma janela de oportunidade para avanço no tema no Congresso, é crucial reconhecer a longa construção institucional, o que dificulta retrocessos.

A autonomia formal dos bancos centrais não é garantia de autonomia na prática, pois ela depende do compromisso de disciplina fiscal de governantes. Isso porque a expansão fiscal descontrolada afeta o apetite de investidores para financiar o governo, por meio da dívida pública, o que acaba se traduzindo em busca por outros ativos, como dólar ou qualquer outro bem que funcione como reserva de valor. Em uma situação extrema, o BC perde o controle da inflação.

Esse risco diminuiu bastante no Brasil, exatamente pelo apreço da sociedade à inflação baixa. Mas há o meio do caminho, com um regime fiscal frágil que reduz a eficácia da política monetária, exigindo juros mais altos. Ou seja, a autonomia passa por o BC poder contar com instrumento eficaz para o controle da inflação. Nesse aspecto, há muito a avançar.

Alguns propõem aperfeiçoamentos no regime de metas de inflação, abolindo o ano-calendário e utilizando a meta contínua. Outros, o aumento da meta. São temas secundários, mas que não deveriam avançar de forma oportunista, para forçar cortes de juros no curto prazo. Um benefício pequeno ante o custo de arranhar a construção institucional do BC. A agenda necessária para reduzir os juros é outra, é a agenda fiscal.

Não há a mesma institucionalidade na política fiscal, apesar dos muitos esforços desde a criação da Secretaria do Tesouro, em 1986. A regra de ouro da Constituição (o governo não pode se endividar para pagar despesas correntes) não pegou. A LRF (não pode criar despesa sem fonte de receita definida) com alguma frequência é violada, se não formalmente, em seu espírito. Houve muita contabilidade criativa para camuflar déficits primários.

A regra do teto foi mal gerida na pandemia e acabou alimentando violações posteriores, com grupos organizados aproveitando para deixar mais despesas fora do teto. Por essa perspectiva, o arcabouço fiscal já nasce com credibilidade comprometida.

Regras fiscais precisam estar acompanhadas de compromisso de governantes com a disciplina fiscal, com reformas. E arrumar as contas públicas é comparativamente mais difícil diante das pressões de grupos organizados, que se beneficiam da falta de transparência, governança e de análise de custo-benefício da ação estatal.

Aqui, qualidade e quantidade se misturam. Como as políticas públicas pouco entregam, a demanda por recursos é inesgotável. A solução é complexa e exige perseverança, envolvendo inclusive reforma administrativa para melhorar a ação estatal. Não é algo que combina com governos fracos e focados no curto prazo.

 

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