O Globo
Peço licença aos leitores e leitoras. Hoje
não consigo escrever sobre economia. Um pouco, talvez
Meu pai foi um homem de sorte.
Nasceu em uma aldeia na Palestina, na época
do mandato britânico, após a partilha do Império Otomano. O mundo dividido
pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial trouxe graves consequências
históricas. Ao menos meu pai aprendeu inglês, atributo que lhe abriu muitas
portas profissionais. Uma reflexão: por ironia, o domínio da língua inglesa
pode ter contribuído para a Índia se inserir no mundo da tecnologia digital.
Jovem inquieto e desajeitado para seguir a
profissão de pedreiro, dos familiares, contou com a sorte de ter um pai sábio,
que o mandou estudar em Belém. Mais sorte ainda ter sido acolhido por uma
família cristã, amiga do meu avô, mesmo ele sendo muçulmano. Não fosse isso,
teria sido impossível realizar o sonho de estudar.
Foi, assim, acumulando capital humano por meio da escola. O conhecimento de matemática e o raciocínio lógico fizeram a diferença adiante. Papai não fugiu à evidência empírica quanto à importância da educação para a mobilidade social.
Na criação do Estado de Israel, a região de
sua aldeia foi inicialmente incorporada à Jordânia. Isso não o poupou do trauma
do conflito, que o fez passar por situações que uma criança não deveria, em
meio ao pânico dos adultos, deixando marcas em sua personalidade. Mas, por
sorte, escapou da morte e da Nakba. Seu vilarejo foi poupado da destruição, e
sua família, mesmo mais empobrecida, foi preservada.
Jovens, em qualquer parte do mundo,
precisam de perspectiva de futuro, algo que se perdeu na vida dura dos
palestinos. Meu pai inquieto poderia ter engrossado a estatística daqueles que
se desesperam, mas ele optou por emigrar aos 21 anos.
Utilizou suas economias, fruto de salário
como técnico em contabilidade em banco na Jordânia, para comprar passagem na
terceira classe do navio para o Brasil. Não sem antes prover algum conforto aos
pais, como a compra de uma geladeira. Causou um grande espanto na aldeia, que
não conhecia aquela modernidade.
Poucos dias após sua chegada, por sorte,
conheceu minha mãe, estudante de Biologia (antiga história natural) da USP, que
passava os finais de semana na casa dos pais, em Campinas. Só foi possível o
diálogo entre eles por causa do domínio do inglês. O mascate tentava vender
mercadoria para a senhora portuguesa, humilde e analfabeta.
Por sorte, ela se interessou pelo produto e
chamou a filha, letrada, para tentar entender aquele rapaz de língua enrolada e
com as mãos destreinadas machucadas pelo peso das mercadorias.
Por sorte, veio para um país que muito
prometia. E ainda, para um estado que crescia rapidamente, São Paulo. Em pouco
tempo deixou de ser mascate para se tornar professor de inglês de um executivo
de uma multinacional. Foi a porta de entrada no mercado de trabalho formal.
Em um país aberto e acolhedor, ele não
precisou se isolar em comunidades estrangeiras, algo comum em outros países.
Teve sorte. Rapidamente se incorporou à sociedade. Muitos já não identificavam
seu sotaque.
Bom de matemática, dialogava com os
engenheiros em seus empregos. Assim, cresceu. Viveu o Brasil do milagre
econômico, obteve crédito habitacional e tinha acesso a bons serviços públicos.
Como muitos imigrantes, era disciplinado e
poupava bastante — um hábito menos presente nas classes médias daqui, com
consequências econômicas e sociais. Sua poupança o permitiu, mais adiante,
empreender no comércio. Ele conquistou a liberdade no Brasil e prosperou. A
maioria ficou para trás, confinada em suas aldeias.
Ele sabia de seu grande esforço, mas também
de sua sorte. Por isso mesmo, era grato a Deus e ao país que o acolheu.
Entristecido pelos problemas brasileiros, me pediu para trabalhar para que meu
filho não desista do Brasil. Hoje muitos preferem seus descendentes fora do
país.
Sorte minha ter sido filha do Ibrahim. Pai
rigoroso, não poupou esforços para que tivéssemos acesso a boas escolas.
Apoiou, sem questionar, minha escolha de sair de casa para estudar Economia na
USP, em São Paulo.
Na noite de sexta passada, meu pai fez sua
passagem.
Que os mais humildes não dependam tanto da
sorte para darem certo na vida. Que contem com liberdade e igualdade de
oportunidades. Esse precisa ser o objetivo de todos os governantes.
Que os mais humildes não dependam tanto da
sorte. Esse precisa ser o objetivo dos governantes.
Uma bela história,mas o pai dela não contou com a ''sorte'',ele gostava de estudar e era disciplinado,a maioria não é.
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