Valor Econômico
Memórias de dez anos atrás trazem fatos que
repercutem no Brasil de hoje
No dia 22 de junho de 2013, eu havia
participado da festa junina na escola dos meus filhos pela manhã e de lá desci
a pé para o centro de Belo Horizonte, onde havia combinado de me encontrar com
um (ex) casal de amigos.
Havia uma atmosfera diferente na cidade, e
não era devido ao jogo entre Japão e México pela Copa das Confederações,
marcado para as 16 horas no Mineirão. Nos últimos dez dias o país vinha sendo
agitado por manifestações de milhares de pessoas e naquele sábado seria
realizada a maior passeata em BH.
Chegando à Praça Sete, pude constatar aquilo que vinha acompanhando pelos jornais e pela TV. Com pincéis e cartolinas coloridas, jovens pediam educação e saúde “padrão Fifa” e escreviam palavras de ordem contra a corrupção. Embora eu tivesse visto vários conhecidos de esquerda, a maioria claramente não tinha preferência partidária e estava num protesto de rua pela primeira vez - éramos “manifestantes de sofá”, como se criticava na época.
Um desses conhecidos com os quais esbarrei
por acaso apontou preocupado para um grupo de rapazes usando chapéu - disse que
seriam integrantes da juventude reacionária ligada a Aécio Neves, cogitado para
disputar a eleição presidencial seguinte.
Sinal do que viriam a ser os próximos anos,
esse meu amigo hoje é assessor da primeira deputada federal trans do país e um
dos jovens do chapéu é o atual presidente da Câmara Municipal de BH, enquanto
Aécio foi rebaixado para a segunda divisão da política nacional.
A manifestação saiu do hipercentro da
cidade e se dirigiu para a Pampulha. Dos pontos mais altos da avenida Antônio
Carlos dava para ver quarteirões inteiros tomados. As reportagens falaram em
mais de 100 mil pessoas, quase o dobro da capacidade do novo Mineirão,
rebatizado de “arena” depois da reforma que custou mais de R$ 1 bilhão aos
cofres públicos.
O Google Maps indica que andamos cerca de
6km. Ao longo do trajeto, eu e meus amigos, ambos arquitetos, trocávamos ideias
sobre a ocupação do centro da cidade e, claro, a situação política e econômica
do país. Na noite anterior, a presidente Dilma Rousseff havia feito um
pronunciamento em cadeia nacional prometendo um pacto pela melhoria dos
serviços públicos e uma ampla reforma política.
Nossa experiência democrática teve fim
quando nos aproximamos do Mineirão e começou um confronto entre os “black
blocs” e a polícia militar. Com medo do quebra-quebra e já sentindo os
primeiros sinais do gás lacrimogêneo, desviamos da multidão e pegamos o primeiro
ônibus retornando ao centro da cidade.
De uma certa forma, aqueles dias reverberam
até hoje sobre a conjuntura política do país.
Contando com a ajuda do meu Kindle,
relembro muito do que eu li naquele tempo. Dois “instant books” foram lançados
ainda no calor das jornadas. Em “Choque de Democracia: Razões da Revolta”,
lançado em 26 de junho de 2013, o filósofo Marcos Nobre destacou: “As revoltas
de junho de 2013 não têm lideranças, palanques nem discursos. As passeatas se
formam, se dividem e se reúnem sem roteiro estabelecido. [...] Organizam-se a
partir de catalisadores nas redes sociais e no boca a boca das mensagens de
texto. Não são revoltas dirigidas contra este ou aquele partido, esta ou aquela
figura política. São revoltas contra o sistema, contra ‘tudo o que está aí’.”
Já em “Cidades Rebeldes: passe livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil”, uma coletânea de artigos
publicada em julho de 2013, encontrei um grifo que fiz num trecho da professora
Erminia Maricato: “Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com
melhores salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de vida
dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas - transporte, moradia,
saneamento, educação, saúde, lazer, iluminação pública, coleta de lixo,
segurança.”
Outro livro que li naquelas semanas foi
“Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais na era da internet”, do
sociólogo espanhol Manuel Castells, que contém um posfácio escrito
especialmente para a edição brasileira. Para o autor, junho de 2013 seria mais
um exemplo do padrão de mobilizações que eclodiam pelo mundo, conectadas pelas
redes sociais.
Mas a obra que mais me marcou naquela época
foi “Why Nations Fail”, dos economistas Daron Acemoglu e James Robinson.
Lançado em 2012, em sua conclusão o livro apontava o Brasil como um caso
bem-sucedido de país que “quebrava o molde” das nações condenadas ao atraso, a
partir da “emergência de um governo comprometido com a provisão de serviços
públicos, expansão educacional e um verdadeiro nivelamento das condições do
jogo político”.
Meu comentário feito em uma nota no Kindle
neste trecho lembrava o superfaturamento das obras da Copa, os empréstimos
bilionários do BNDES para grandes empresas, a má qualidade da saúde e da
educação e a corrupção - argumentos que desmentiam a conclusão de Acemoglu e
Robinson e que motivaram muitos brasileiros a sairmos às ruas naquele momento.
Como se vê, muitos dos fatores que
motivaram as jornadas de 2013 ainda não foram devidamente solucionados no país.
Sendo assim, uma nova onda de protestos pode voltar a ocorrer? Espero discutir
isso na próxima semana, com a ajuda de uma nova leva de livros que acabaram de
sair sobre a revolta de dez anos atrás.
*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Pois é!
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