Valor Econômico
Enquanto presidente se encanta com atuação
internacional, Lira quer ser o chefe de governo
Se alguém está interessado em saber o que
está em jogo na atual queda de braços entre Lula e Arthur Lira, quais são as
ambições do maior líder do Centrão e os riscos que corre o presidente da
República, recomendo fortemente a leitura do “Relatório do Grupo de Trabalho
destinado a analisar e debater temas relacionados ao sistema de governo
semipresidencialista”.
O documento de 58 páginas já tem quase um ano, mas sua atualidade é chocante. Em março de 2022, Arthur Lira instituiu um grupo de trabalho para discutir a possibilidade de mudar nosso sistema de governo para o semipresidencialismo, modelo de governo que é adotado em países como Portugal e França.
Ao contrário das comissões da Câmara, cujas
composições devem respeitar o peso de cada partido no Plenário, os integrantes
do GT de Lira foram escolhidos de acordo com a sua conveniência. Entre seus
oito membros não havia nenhum parlamentar de esquerda - apenas representantes
de MDB, União Brasil, PSD, PL, Novo, PP, PSDB e Republicanos.
Para dar peso político à iniciativa, Lira
convocou também oito juristas, com destaque para o ex-presidente Michel Temer e
o sempre lembrado Nelson Jobim, ministro aposentado do STF.
Ao final de 120 dias de discussões, o relator
do grupo, ex-deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), apresentou seu relatório, que
expressa as vantagens do semipresidencialismo, propõe um plebiscito consultando
a população sobre a pertinência de se mudar nosso sistema de governo e
apresenta um desenho de como a política brasileira funcionará caso a proposta
seja aprovada.
O grupo de trabalho parte de um diagnóstico
correto: nosso sistema de “presidencialismo de coalizão” é propenso a crises,
que se intensificaram nos últimos anos com o fortalecimento do Legislativo
frente à Presidência da República.
Em vez de lidar com causas estruturais -
como fragmentação partidária, regras eleitorais e o processo orçamentário - o
GT propõe uma opção radical: mudar o sistema de governo e entregar o poder ao
bloco que tem maioria no Congresso.
O relatório do GT, entregue três meses
antes das eleições, é profético em relação ao que estamos vivendo no Brasil: “O
problema decisivo é a alta probabilidade de que um presidente se eleja com um
programa e os parlamentares, inclusive da base do governo, atuem tendo em vista
outras prioridades, igualmente legítimas, pois decorrentes da relação que
estabeleceram com o eleitorado durante a campanha eleitoral”.
Sim, Lula venceu a eleição defendendo uma
visão de país, mas a maioria do Congresso não concorda com seu plano de
governo. Isso já ficou claro com as derrotas do decreto do saneamento, do marco
temporal, da extinção da Funasa e do esvaziamento das pastas do Meio Ambiente e
dos Povos Indígenas.
E qual a solução para esse impasse? “A
inovação necessária é a introdução de uma figura intermediária entre os dois
polos potencialmente conflitantes, ou seja, entre o presidente e o parlamento.
Essa figura, que assegura o compartilhamento de responsabilidades, é o chefe de
governo, indicado pelo presidente da República, mas vinculado à maioria
parlamentar, pois sujeito à confiança do parlamento”. Você já deve ter
entendido o plano. O que o relatório chama de “compartilhamento de
responsabilidades” na verdade significa dar o comando ao Centrão.
No sistema semipresidencialista de Lira, o
presidente da República, eleito pelo voto popular, representaria o Brasil no
exterior, comandaria as Forças Armadas, sancionaria e vetaria projetos de lei
e, mais importante, indicaria o primeiro-ministro integrante no bloco dominante
de partidos.
Já o primeiro-ministro, aprovado pelo
Congresso Nacional, exerceria as funções de governo, como montar seu
ministério, propor e executar o orçamento e conduzir as políticas públicas e
econômicas.
Lula parece não ter entendido, mas nestes
primeiros cinco meses de governo ele abriu espaço para Lira sonhar com um
semipresidencialismo sem nem precisar de plebiscito. Preocupado em construir
uma imagem de estadista no exterior e em pacificar as relações com os militares
(típicas funções de um chefe de Estado), o petista não se envolveu com o
dia-a-dia da administração federal.
Sentindo o governo acéfalo, Lira tratou de
encurralar o presidente, exigindo mais cargos e o controle sobre o orçamento.
Com a esquerda possuindo em torno de 130 deputados, enquanto a oposição
bolsonarista tem pouco mais de uma centena, o bloco majoritário na Câmara hoje
é o Centrão de Lira. No limite, Arthur Lira pretende ser o chefe de governo
neste semipresidencialismo de fato.
Lula tem diante de si três alternativas. A
primeira é manter seu foco pessoal na agenda internacional, consentindo com uma
dominância crescente de Lira em sua gestão. Seria o Lula semipresidente. Há
também a opção de agir para retomar o controle do governo, mas pagando o preço de
adotar o programa conservador da maioria do Congresso. Seria a versão
desidratada de um presidente de coalizão.
Lula, porém, pode decidir forçar a barra, e
tentar impor o programa de governo mais radical do PT a um parlamento dominado
pelo Centrão. Talvez esse seja o caminho mais rápido para se tornar um
ex-presidente.
*Bruno Carazza é mestre em
economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
A coisa tá feia para o Lula.
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