segunda-feira, 5 de junho de 2023

Bruno Carazza* - Lula, um semipresidente para Arthur Lira

Valor Econômico

Enquanto presidente se encanta com atuação internacional, Lira quer ser o chefe de governo

Se alguém está interessado em saber o que está em jogo na atual queda de braços entre Lula e Arthur Lira, quais são as ambições do maior líder do Centrão e os riscos que corre o presidente da República, recomendo fortemente a leitura do “Relatório do Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater temas relacionados ao sistema de governo semipresidencialista”.

O documento de 58 páginas já tem quase um ano, mas sua atualidade é chocante. Em março de 2022, Arthur Lira instituiu um grupo de trabalho para discutir a possibilidade de mudar nosso sistema de governo para o semipresidencialismo, modelo de governo que é adotado em países como Portugal e França.

Ao contrário das comissões da Câmara, cujas composições devem respeitar o peso de cada partido no Plenário, os integrantes do GT de Lira foram escolhidos de acordo com a sua conveniência. Entre seus oito membros não havia nenhum parlamentar de esquerda - apenas representantes de MDB, União Brasil, PSD, PL, Novo, PP, PSDB e Republicanos.

Para dar peso político à iniciativa, Lira convocou também oito juristas, com destaque para o ex-presidente Michel Temer e o sempre lembrado Nelson Jobim, ministro aposentado do STF.

Ao final de 120 dias de discussões, o relator do grupo, ex-deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), apresentou seu relatório, que expressa as vantagens do semipresidencialismo, propõe um plebiscito consultando a população sobre a pertinência de se mudar nosso sistema de governo e apresenta um desenho de como a política brasileira funcionará caso a proposta seja aprovada.

O grupo de trabalho parte de um diagnóstico correto: nosso sistema de “presidencialismo de coalizão” é propenso a crises, que se intensificaram nos últimos anos com o fortalecimento do Legislativo frente à Presidência da República.

Em vez de lidar com causas estruturais - como fragmentação partidária, regras eleitorais e o processo orçamentário - o GT propõe uma opção radical: mudar o sistema de governo e entregar o poder ao bloco que tem maioria no Congresso.

O relatório do GT, entregue três meses antes das eleições, é profético em relação ao que estamos vivendo no Brasil: “O problema decisivo é a alta probabilidade de que um presidente se eleja com um programa e os parlamentares, inclusive da base do governo, atuem tendo em vista outras prioridades, igualmente legítimas, pois decorrentes da relação que estabeleceram com o eleitorado durante a campanha eleitoral”.

Sim, Lula venceu a eleição defendendo uma visão de país, mas a maioria do Congresso não concorda com seu plano de governo. Isso já ficou claro com as derrotas do decreto do saneamento, do marco temporal, da extinção da Funasa e do esvaziamento das pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.

E qual a solução para esse impasse? “A inovação necessária é a introdução de uma figura intermediária entre os dois polos potencialmente conflitantes, ou seja, entre o presidente e o parlamento. Essa figura, que assegura o compartilhamento de responsabilidades, é o chefe de governo, indicado pelo presidente da República, mas vinculado à maioria parlamentar, pois sujeito à confiança do parlamento”. Você já deve ter entendido o plano. O que o relatório chama de “compartilhamento de responsabilidades” na verdade significa dar o comando ao Centrão.

No sistema semipresidencialista de Lira, o presidente da República, eleito pelo voto popular, representaria o Brasil no exterior, comandaria as Forças Armadas, sancionaria e vetaria projetos de lei e, mais importante, indicaria o primeiro-ministro integrante no bloco dominante de partidos.

Já o primeiro-ministro, aprovado pelo Congresso Nacional, exerceria as funções de governo, como montar seu ministério, propor e executar o orçamento e conduzir as políticas públicas e econômicas.

Lula parece não ter entendido, mas nestes primeiros cinco meses de governo ele abriu espaço para Lira sonhar com um semipresidencialismo sem nem precisar de plebiscito. Preocupado em construir uma imagem de estadista no exterior e em pacificar as relações com os militares (típicas funções de um chefe de Estado), o petista não se envolveu com o dia-a-dia da administração federal.

Sentindo o governo acéfalo, Lira tratou de encurralar o presidente, exigindo mais cargos e o controle sobre o orçamento. Com a esquerda possuindo em torno de 130 deputados, enquanto a oposição bolsonarista tem pouco mais de uma centena, o bloco majoritário na Câmara hoje é o Centrão de Lira. No limite, Arthur Lira pretende ser o chefe de governo neste semipresidencialismo de fato.

Lula tem diante de si três alternativas. A primeira é manter seu foco pessoal na agenda internacional, consentindo com uma dominância crescente de Lira em sua gestão. Seria o Lula semipresidente. Há também a opção de agir para retomar o controle do governo, mas pagando o preço de adotar o programa conservador da maioria do Congresso. Seria a versão desidratada de um presidente de coalizão.

Lula, porém, pode decidir forçar a barra, e tentar impor o programa de governo mais radical do PT a um parlamento dominado pelo Centrão. Talvez esse seja o caminho mais rápido para se tornar um ex-presidente.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

Um comentário: