O Estado de S. Paulo
O Lula politicamente intuitivo e astuto do primeiro mandato dá lugar a um presidente incoerente, dominado ideologicamente e politicamente desorientado
No mundo de Lula, alhures, fatos não são
fatos, o que significa dizer que tortura não é tortura, repressão não é
repressão, direitos humanos não são direitos humanos, Estado Democrático de
Direito não é Estado Democrático de Direito. Tudo se torna uma mera questão de
narrativa, uma sendo substituída por outra, como se a verdade não existisse em
lugar nenhum. Aliás, como ele e o seu partido advogaram por uma Comissão da
Verdade em relação ao Brasil, se a verdade não existe e tudo é uma simples
questão de narrativa?
A acolhida de Lula ao ditador Nicolás Maduro, pária em nível internacional, recepcionado como chefe de Estado de um regime “democrático”, foi estarrecedora, mesmo para aqueles que começam a se acostumar com o festival de besteiras do novo governo, que nada deve neste quesito ao anterior. Se Stanislaw Ponte Preta ainda vivesse, teria material inesgotável para um novo livro, talvez ainda mais hilário do que o anterior.
Ao afirmar que a realidade repressiva
bolivariana – a do tal “socialismo do século 21” (pobre socialismo, a isso
reduzido) – é uma mera questão de narrativa, servindo aos propósitos dos EUA,
ou seja, do imperialismo e do Ocidente, Lula procurou velar o que lá se passa.
Isso porque o “amigo” é um “companheiro”, seguindo os comunistas soviéticos
que, no passado, se tratavam entre si como “camaradas”. Entre eles, tudo era
permitido, inclusive o crime, a violência, a tortura e a invasão de países tidos
por “inimigos”. A esbórnia com as palavras era mais um atentado ao vernáculo.
Agora, numa suposta cúpula
latino-americana, planejada como uma forma preliminar de união entre países
ideologicamente próximos, visando a ressuscitar o projeto chavista da Unasul,
eis que uma nova pérola política surge. O Brasil passaria a defender a
“democracia” chavista/madurista, que teria sido deturpada por uma narrativa
ocidental, que teria sido apropriada pela mídia internacional. Haveria, aqui, o
resgate de uma vítima, Maduro, que teria sido denegrido pela imprensa
internacional. A serviço, certamente, do “Ocidente”, do “imperialismo” ou de
algo que o valha.
Os 7 milhões de refugiados venezuelanos
espalhados pelo mundo, sobretudo na América Latina, inclusive no Brasil, poderiam
ser escutados. Voz deveria ser dada a eles. São os pobres, os oprimidos, os
violentados. Não é esta, aliás, a bandeira das esquerdas, inclusive do PT? Em
vez disso, voz é dada ao ditador, ao que mantém seu povo sob o jugo da
violência. Vejam só: o ditador torna-se a vítima!
Felizmente, presidentes sensatos estavam
presentes na cúpula, com especial menção ao presidente do Uruguai, Luis Alberto
Lacalle Pou, e ao do Chile, Gabriel Boric. Ambos se insurgiram com veemência
contra as declarações do presidente Lula. O primeiro, de centro-direita,
mostrou que a defesa dos direitos humanos transcende posições ideológicas,
visto que esses direitos são universais, valendo para qualquer país,
independentemente de questões de ordem política. O segundo, de esquerda, seguiu
na mesma linha. No caso de Boric, não deixa de ser surpreendente, pois, sendo
de formação comunista, defensor de pautas identitárias, ele não se alinhou ao
seu “companheiro” de esquerda, conferindo a essa conotação política uma
dimensão universal.
É deveras preocupante que o presidente Lula
exiba tal manifesto desprezo pelos direitos humanos e pelo Estado Democrático
de Direito. O ditador Maduro, na esteira de seu predecessor, suprimiu a
liberdade de imprensa, perseguindo com afinco qualquer voz discordante. Fraudou
sistematicamente o resultado das eleições, exercendo férreo controle sobre as
oposições. Inclusive, decidindo sobre quem poderia ou não disputar as eleições,
redesenhando, segundo suas conveniências, as circunscrições eleitorais. Forças militares,
policiais, paramilitares e parapoliciais reprimem com força os cidadãos,
eliminando fisicamente opositores, além da prática da tortura, há muito
denunciada. O Congresso e o Judiciário foram amordaçados, deixando de ser
Poderes independentes. É essa a “democracia” almejada para o Brasil?
A farsa parece desconhecer limites. Se Lula
planeja se tornar um grande líder internacional, um mediador de conflitos como
na guerra empreendida pela Rússia contra a Ucrânia, o seu caminho não poderia
ser pior. Está rapidamente dilapidando seu capital internacional conquistado ao
ganhar as eleições defendendo a “democracia” e a pauta ambiental, ambas caras
ao Ocidente, tão desprezado em suas declarações. Seu posicionamento junto de
párias internacionais em nada contribui para o seu projeto. A pauta ambiental
começa, igualmente, a passar para segundo plano. O Lula astuto e politicamente
intuitivo do seu primeiro mandato está dando lugar a um presidente incoerente,
dominado ideologicamente e politicamente desorientado.
Que tal Lula advogar por uma Comissão da
Verdade para investigar os crimes de Maduro e de seu entorno, mantendo ao menos
um mínimo de coerência em relação a atitudes suas no passado?
*Professor de filosofia na Ufrgs
Lula deu um tiro no pé.
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