O Globo
Porchat não errou, porque nunca defendeu
humor racista ou que causasse dor. Mas isso não basta: agora o humor tem uma
‘função social’
A Ilha Porchat, no litoral paulista, ficou
famosa pelos bailes de carnaval, apinhados de celebridades. Isso nos anos 80,
quando, para que fosse considerada celebridade, a pessoa precisava ser
razoavelmente conhecida.
Dois detalhes: os bailes eram no Ilha Porchat, no masculino. Não que a ilha, como muitos foliões, mudasse de gênero no carnaval: havia aí uma silepse — tratava-se do Clube Ilha Porchat. E ela não era, tecnicamente, uma ilha, mas um promontório. Só que, convenhamos, “Baile do Promontório Porchat” está longe de ter o mesmo charme.
Porchat é o que hoje chamaríamos de
acidente geográfico genderfluid. Na maré baixa, unida ao continente, era
promontório; subia a maré e ei-la transitoriamente em situação de ilha. Como a
natureza é pródiga em simbolismos, o humorista Fábio Porchat emulou,
recentemente, a ilha com que compartilha o sobrenome.
Defendeu valentemente a liberdade de
expressão:
— Dentro da lei pode-se fazer piada com
tudo tudo tudo. Não gostar de uma piada não te dá o direito de impedir ela
[sic] de existir. Ainda mais previamente.
Posicionou-se com veemência contra a censura:
— Impedir o comediante de pensar uma piada
é loucura. Mesmo que você não goste desse comediante, mesmo que você despreze
tudo o que ele diz, ele tem o direito de dizer. Ele tem o direito de ofender.
Não existe censura do bem. (...) Não confundam ‘não gosto dele’ com ‘ele não
pode falar’.
Mas, lembrando Caymmi, se sabe que muda o
tempo, se sabe que o tempo vira, aí o tempo virou. Porchat se viu, como uma
península, cercado de ondas raivosas por (quase) todos os lados. Sofreu o
linchamento virtual prescrito aos que, mesmo com relevantes serviços prestados
à causa, se metem a mijar fora do penico da militância dita progressista. Muita
gente ficou decepcionada com seu elogio do artigo 19º da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, um daqueles cujo prazo de validade parece ter vencido.
Feito maré vazante, Porchat recuou:
— Alguém que tem o privilégio de ter uma
voz que chegue em muita gente tem que ter o cuidado de escolher bem as
palavras, e eu não tive esse cuidado. (...) Eu falei de forma rasa,
precipitada, confusa; então, eu errei.
Porchat não errou, porque nunca defendeu
humor racista ou que causasse dor. Mas isso não basta: como a arte engajada,
agora o humor tem uma “função social”.
— Humor é do contra — diz Beto Silva, do
saudoso “Casseta & Planeta”, em seu livro “Notas sobre humor”. —Na
política, o humorista é a favor da democracia, mas é muito mais contra a
ditadura. (...) Quando um humorista faz piada a favor, a gente acaba
desconfiando sobre que tipo de favor é esse que ele quer. Humor a favor não só
é sem graça, como quase sempre não é de graça.
E prossegue:
— O cara tem direito de fazer uma piada
racista? Ele tem o direito de contar a piada, mas aí vai esbarrar em outro lado
da lei, que diz que racismo é
crime. Ele pode ser preso, não por ter se expressado, mas por ter sido racista.
John Donne escreveu, no século XVII, que
“nenhum homem é uma ilha”. Não lhe foi dado conhecer os homens (e mulheres e
agêneros) do século XXI. Alguns são continente — seguros de suas posições, se
movendo ao ritmo do lento balé das placas tectônicas. Outros, como o/a Porchat,
vão de ilha a promontório, ao sabor das marés.
Texto muito bem construído
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