sexta-feira, 2 de junho de 2023

Entrevista | Sergio Fausto: Junho de 2013 não produziu melhoria institucional

Para o cientista político Sergio Fausto, a democracia não avançou com o episódio

Por Ricardo Mendonça / Valor Econômico

Para o cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, junho de 2013 foi um movimento inédito na história do país, pode ser considerado “um divisor de águas” na política, mas não conseguiu produzir mudança institucional capaz de melhorar a qualidade do Estado brasileiro.

O sistema político não conseguiu interpretar as aspirações de 2013 e não ofereceu resposta, diz. Na sequência, a Lava-Jato começou como algo positivo, mas depois “degenerou” o combate à corrupção num “processo de justiçamento politicamente orientado”.

À sua maneira, de um “modo destrutivo”, o então deputado Jair Bolsonaro acabou sendo o único capaz de traduzir eleitoralmente o que havia brotado nas ruas e virou presidente. O movimento, com isso, desaguou no bolsonarismo.

"Justamente porque não houve mudança do sistema político é que acabou prevalecendo Bolsonaro”

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Efeito mensalão
“Junho de 2013 foi um curto-circuito. É a imagem da uma panela de pressão: houve uma liberação da pressão interna, explodiu. Eu acho que o principal gatilho daquele processo é o fato pouco lembrado de que, ao longo de 2012 e até o início de 2013, o país foi exposto pela TV, em particular pelo canal da Justiça, ao julgamento do mensalão. Nunca antes na história, por um período tão prolongado, mas num alto nível de concentração, o público foi exposto a revelações sobre a maneira pela qual política era financiada. Há outros fatores, mas eu acho que esse é um gatilho fundamental para entender aquela explosão.”

Copa do Mundo
“Outro gatilho é o fato que o país passou a gastar dinheiro público na construção dos estádios da Copa. São esses dois slogans que dão a chave para a compreensão das manifestações: ‘Vocês não nos representam’ e o pedido ‘queremos saúde padrão Fifa’.”

Jair Bolsonaro
“Era uma manifestação contra a política, sem pauta clara de reivindicações e sem liderança. Era muito difusa. Mas o que galvanizava, unificava, era o rechaço à política, aos partidos, ao Congresso, aos políticos. Quem soube de fato canalizar esse sentimento meio desgovernado foi o Bolsonaro. Quem eleitoralmente traduziu esse sentimento foi o Bolsonaro. O único que soube, a seu modo - e a meu juízo, de um modo muito destrutivo -, captar a mensagem de 2013 e dar uma resposta foi o Bolsonaro. Uma resposta de qualidade muito ruim. Mas só ele. O conjunto do sistema político foi interpelado e não deu resposta alguma.”

Ineditismo
“A única coisa que me aparece na lembrança com alguma similaridade é a reação popular ao suicídio de Getúlio, em 1954, o que impede um 1964 antecipado [golpe]. Mas não tem a mesma dimensão. E não era uma manifestação antipolítica. Era contra uma coalizão de forças, que reunia UDN, civis e militares, sobretudo brigadeiros da Aeronáutica, sob a liderança do Carlos Lacerda, e naquele contexto da chamada República do Galeão. Eles encurralaram o governo Getúlio Vargas. Acho que junho de 2013 foi mesmo algo inédito na história do país. Todas as outras grandes manifestações tiveram alguma liderança.”

Curto-circuito, terremoto
“Nos anos 90, o [ex-presidente] Fernando Henrique, talvez influenciado pelo que havia visto em 1968 na França, já dizia que quando você tem sociedades complexas, de repente ela entra em curto-circuito. Uma grande ebulição que ninguém conseguiu prever. A metáfora do terremoto serve bem. Terremotos são assim: você sabe que virão, mas não sabe quando, como e com qual intensidade.”

Teorias
“A teoria mais fraca para explicar aquilo é a do surgimento de uma nova esquerda pós-PT. O contexto se dá numa sociedade que havia avançado muito na aquisição de bens de consumo - a renda tinha melhorado, as condições de crédito, também -, mas a oferta de serviços públicos não havia acompanhado. Mas isso é um contexto, não explica a explosão. Defasagem em serviços públicos pode gerar pressão, insatisfação, mas numa perspectiva gradualista.”

Crise de representação
“O [filósofo] Marcos Nobre aponta um caminho mais importante para explicar 2013 quando fala em crise no sistema de representação. É aquilo que foi verbalizado no slogan ‘Vocês não nos representam’. É rechaço. Um sentimento de indignação que de repente surge.”

Dilma Rousseff
“Dilma tinha muita popularidade até aquele momento. Lula havia encerrado seu mandato [em 2010] num patamar de popularidade impressionante. Apesar disso, tem aquele fenômeno. Então isso é surpreendente. A compreensão sobre 2013 ainda está em disputa. É um fato recente, foi um divisor de águas na política brasileira.”

Outros caminhos
“Junho de 2013 abriu um cardápio grande de possibilidades. Bolsonaro não era o único caminho. Poderia ter havido uma mudança mais profunda do sistema político. Acho que é possível dizer que justamente porque não houve uma mudança significativa do sistema político é que acabou prevalecendo Bolsonaro.”

Junho derrotado
“Não tinha agenda clara, mas tinha duas mensagens difusas que expressavam as aspirações: ‘esses partidos não nos representam’ e ‘esse Estado que está aí não nos entrega serviços públicos à altura’. Duas consciências. Uma do cidadão, outra do pagador de impostos. Quando isso ocorre, cabe às lideranças políticas transformar as mensagens em mudanças institucionais, em políticas públicas concretas. Não ocorreu. Nisso, o movimento de junho de 2013 fracassou.”

Sem resposta
“Como o sistema político foi incapaz de dar uma resposta, o preço que pagamos foi o bolsonarismo. O que prevaleceu então foi o ‘vamos destruir’. Bolsonaro verbalizou isso com clareza. E o destruir incluiu a ideia de destruir o funcionamento democrático da sociedade. Então 2013 foi legítimo, mas a derivação política que 2013 encontrou foi algo feio.”

Lava-Jato
“O anseio pelo combate à corrupção, tarefa fundamental para consolidar um Estado mais eficiente, surgiu após 2013 como uma novidade positiva, a Lava-Jato. Mas ela se degenerou num processo de justiçamento politicamente orientado. A Lava-Jato se perdeu ao longo do caminho e isso gerou enorme decepção no conjunto da sociedade. Um episódio sintetiza: Quando o Sergio Moro aceitou ser ministro do Bolsonaro, ele assinou o atestado de óbito da legitimidade do combate à corrupção tal como havia transcorrido desde 2014.”

Acontecer novamente
“A insatisfação com o sistema político e com a entrega do Estado continua elevada. E aquele ânimo despertado pela Operação Lava-Jato se esvaiu. O resultado é que você tem hoje uma sociedade mais cética. As condições gerais que explicam 2013 não foram fundamentalmente alteradas. Portanto, o risco de ocorrer novamente está posto. Isso não significa que vá acontecer de imediato.”

Legado
“Não teria ocorrido Lava-Jato sem 2013. Porque, como resposta aos protestos, houve uma modificação legislativa que permitiu a operação: o instituto da delação premiada, definido com maior clareza. Só que a Lava-Jato, a rigor, não produziu mudança institucional duradoura. Ela produziu enorme chacoalhão e depois degenerou o processo. É óbvio que apurou crimes, não era invenção. Mas a maneira pela qual ela foi conduzida acabou por desmoralizá-la. Então 2013 não produziu mudança institucional positiva que melhorasse a qualidade do Estado brasileiro e a qualidade da democracia.”

Comportamento do governo
“Eu não isolaria o governo Dilma para uma análise. O governo tomou um enorme susto. Aí surgiu com uma proposta estapafúrdia de convocação de uma Assembleia Constituinte para fazer reforma política. Mas isso fica na categoria daquelas ideias mal pensadas que, na verdade, refletem mais um susto do governo do que propriamente uma iniciativa. Logo voltaram atrás. E depois adotou medidas importantes para dar mais ferramentas para atuação contra o crime organizado. Então acho que o governo não se saiu necessariamente mal. Mas acho que seria um problema isolar a análise ao governo. O sistema político, no seu conjunto, é que foi desafiado e que deveria ter feito algo.”

Financiamento da política
“O sistema político deveria reagir assim: ‘Olha, a maneira pela qual nós estamos financiando a política deslegitima a política. Não é mais possível fazer desse jeito. Nem mais de forma disfarçada, isso veio a público. Temos que construir uma outra forma de financiamento’. Mas isso não ocorreu. Verdade seja dita, por linhas tortas, por ação do Judiciário, o financiamento de campanhas e partidos por parte de pessoa jurídica foi proibido. Então daria para dizer que esse é algum legado, voltando atrás daquilo que eu disse. Mas isso, assim como a Lava-Jato, é muito insuficiente. Os partidos continuam sendo controlados por oligarquias, não há democracia interna e, para abusar do inglês, não há ‘accountability’ na gestão dos recursos. Também não houve evolução no processo orçamentário e nem na entrega do serviço público. Aquelas aspirações difusas que apareceram em 2013 não encontraram bons intérpretes nem vontade de transformá-las em reformas concretas. O que aconteceu foi o bolsonarismo.”

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