André Singer* / Hugo Fanton** / Ilustríssima /Folha de S. Paulo
Em entrevista, o alemão Wolfgang Streeck fala de nova ordem bipolar, equilíbrio de forças internacionais e Guerra da Ucrânia
[Resumo] Um dos principais sociólogos em
atividade, o alemão Wolfgang Streeck mostra-se pessimista em relação ao futuro
imediato da "desordem mundial" que vivemos. Em entrevista, ele
comenta que passamos por momento de transição, acarretado por crise do
capitalismo democrático nas últimas décadas, para uma possível nova ordem
bipolar liderada por EUA e China, o que, a seu ver, pode reacender o risco de
uma grande guerra. Ele diz ainda que forças de esquerda devem apoiar a paz
entre Ucrânia e Rússia, sem se aliarem a nenhum dos dois países, e que esperar
uma vitória unilateral, com Vladimir Putin sendo julgado em Haia, é
"suicida".
O sociólogo alemão Wolfgang Streeck, professor emérito do
Instituto Max Planck, tornou-se conhecido fora dos círculos acadêmicos dez anos
atrás quando publicou o livro "Tempo Comprado: A Crise Adiada do
Capitalismo Democrático", traduzido para o português em 2018.
De lá para cá, virou um dos principais intérpretes da desordem
mundial. Nesta entrevista —concedida em 12 de junho, via Zoom, de Colônia, na
Alemanha—, mostrou-se pessimista em relação ao futuro imediato.
Segundo ele, em meados dos anos 1970 o capitalismo democrático começou a se desfazer,
dando início a um período entrópico. Nele, predominaria a ideia anotada pelo
dirigente comunista Antonio Gramsci no "Caderno do
Cárcere" volume 3 (1930): "A crise consiste […] no fato de que o
velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verificam-se os
fenômenos patológicos mais variados".
Quanto tempo levará a transição para a nova ordem? Ninguém sabe,
afirma Streeck. O fim do Império Romano é o caso paradigmático, e até hoje é
difícil determinar a duração do seu desmoronamento.
Por ora, Streeck acha possível o estabelecimento de uma ordem
econômica global bipolar, em que Estados Unidos e China liderariam blocos com funcionamento
próprio. Teme, entretanto, que um dos polos, no caso o norte-americano, por ser
militarmente mais forte, decida usar a vantagem antes que a perca. "Meu
medo é que Biden planeje atacar a China, com a ajuda da Otan", disse.
"Os Estados Unidos têm uma vantagem maravilhosa, não é
possível vencer uma guerra contra eles. São como uma ilha enorme, um
continente, e têm apenas dois vizinhos: o Canadá, quase um estado americano, e
o México, onde suas tropas já estão presentes, presumivelmente para combater o
tráfico de drogas", afirma Streeck.
Para acabar com a Guerra da Ucrânia, bastaria os americanos se
disporem a uma saída negociada com os chineses, pensa Streeck. Já a ideia de
uma vitória unilateral, com Vladimir Putin sendo julgado em Haia, é "suicida",
acredita.
"Há alguns dias, o governo alemão prometeu a Biden enviar
dois grandes navios de guerra para as águas do sul da Ásia, perto da costa
chinesa. Imagine, a marinha alemã na costa da China?! Vocês me perguntam o que
espero? Só posso dizer que não estou mais esperando nada, exceto surpresas
bizarras."
Leia a seguir os principais trechos da conversa, cuja íntegra sairá em livro publicado pela editora da Unicamp no primeiro semestre de 2024.
A ideia gramsciana de interregno está associada em sua obra a
períodos diferentes: o desmantelamento da ordem pós-guerra pela revolução
neoliberal, de 1975 em diante; o fim da possibilidade de o capitalismo comprar
tempo, por volta de 2008 em diante; o atual "cabo de guerra" entre as
elites da coalizão neoliberal e novos populismos, em torno de 2016 em diante; e
um período prolongado de desordem que viria após o fim do capitalismo, um
futuro incerto que ainda não começou. Poderia comentar os diferentes
significados de interregno?
Gramsci usa o termo para indicar uma situação de muita incerteza,
causada pelo rompimento das estruturas que criavam algo como ordem ou
previsibilidade, e não se sabe o que vem depois. Daí surgem todos os tipos de
distúrbios patológicos. Portanto, é um conceito geral que descreve a situação
em que a velha ordem está morrendo, e a nova ainda não pode se materializar.
A meu ver, o período de interregno começa quando a ordem
relativamente estável do pós-guerra principia a desmoronar no final da década de 1970.
Mas é preciso ter uma visão de longo prazo quando se pensa em mudanças de
época, pois nem tudo desmorona de uma vez. Certas coisas continuam; outras se
tornam disfuncionais.
O fim do Império Romano é o caso paradigmático de mudança social
fundamental. Quanto tempo isso levou? Não se sabe ao certo. Quando o último
imperador estava em Roma, havia outro em Bizâncio. Depois, vários tentaram
restaurá-lo, como os carolíngios. Há, portanto, uma mistura de estabilidade e
colapso.
O mérito de Gramsci é apontar para o fato de que as estruturas
sociais produzem algo como continuidade e previsibilidade, mas há situações em
que uma ordem existente está tão profundamente danificada que não se sabe o que
virá a seguir.
Quando olhamos para o momento presente, é possível argumentar que
estamos vendo uma próxima fase que eu chamaria, de forma provisória, de
economia bipolar global: uma economia de guerra, dividida em duas metades, China e
Estados Unidos. Teríamos sido capazes de imaginar algo assim há
cinco anos? Impossível.
Nos últimos dez anos, o senhor tem destacado os aspectos
desestabilizadores do período pós fim da compra de tempo pelo capitalismo. Mas
como devemos analisar as contratendências de estabilização sistêmica, como o
sistema transnacional de Bancos Centrais, atuando para absorver os choques
causados pela especulação financeira, a reação permanente do que Tariq Ali
chama de "extremo centro" e as ideologias de consumismo
e meritocracia?
No que diz respeito à cultura cotidiana, meritocracia e
consumismo, se a esquerda não puder oferecer um modo de vida às pessoas mais
satisfatório do que o consumo, o trabalho árduo e duro para aumentar
o capital dos proprietários privados e assim por diante, se não tiver algo a
oferecer, então perdemos.
No nível institucional, acho que podemos diagnosticar que o
sistema financeiro global não é, como vocês sugerem, um pilar de estabilidade,
mas está cada vez mais fora de controle internamente. Então teríamos uma
situação gramsciana, em que a estrutura institucional entra em colapso, talvez
em nova crise financeira global.
As pessoas não estão preparadas para pensar em um modo de vida que
seja mais sustentável do que um capitalismo global ingovernável. Essas questões
estão muito distantes da experiência cotidiana. A maioria das pessoas tem de lutar muito para sobreviver
e colocar comida no prato. Elas não têm tempo para estudar economia
política. Não entendem o que significa uma pirâmide financeira que pode se
romper a qualquer momento, a criação de dinheiro do nada para manter as coisas
funcionando, que tipo de consequências futuras pode ter.
Essa sociedade, em algum momento, será incapaz de fornecer até
mesmo pequenas satisfações. Mas esse é um processo de longo prazo, e estou
totalmente de acordo, precisamos conhecer esses estabilizadores socioculturais
e pensar no que pode substituí-los.
Poderia falar sobre as reações "desde baixo" às elites
da coalizão neoliberal, presentes em seu último livro, "Zwischen
Globalismus und Demokratie" [entre o globalismo e a democracia], publicado
na Alemanha em 2021?
A democracia não é ameaçada apenas por movimentos autoritários de direita. Ela vem sendo
esvaziada há décadas com a destruição dos sindicatos, da negociação coletiva,
da social-democracia, e com o vácuo dos partidos políticos, que se
transformaram em organizações não representativas e, portanto, mais ou menos
impotentes, especialmente na esquerda.
Max Weber dizia que a sociologia é uma
ciência que se baseia na compreensão dos significados que as pessoas atribuem
às ações. Se quisermos entender o que as pessoas [ligadas a movimentos
autoritários de direita] estão fazendo, acho justo dizer que estão buscando
proteção nacionalista autoritária contra as incertezas globais, na ausência de
opções de proteção internacionalista democrática.
A razão pela qual esses grupos se tornaram tão visíveis e
poderosos é simplesmente porque a esquerda não foi capaz de oferecer a eles o
tipo de proteção contra as incertezas das rápidas mudanças sociais e econômicas
que agora dominam a vida de muitas pessoas, especialmente nas classes mais
baixas.
Certamente isso tem a ver com a globalização. A partir de 1990,
sob o feitiço da nova ordem mundial propagada pelos Estados Unidos, até mesmo
os partidos sociais-democratas começaram a se entusiasmar com o mundo único e
os mercados livres.
O que deveríamos fazer era nos ajustar às restrições dos mercados.
Nas primeiras décadas do século 21, houve uma grande decepção e essa decepção,
ressentida e não esclarecida, foi captada pelos partidos nacionalistas e
agressivos de direita.
No artigo "Return of the King" (publicado no blog
Sidecar, da New Left Review, em abril de 2022), o senhor antecipou que a guerra
ucraniana poderia estar caminhando para um conflito longo. Como a esquerda pode
enfrentar o desafio de apoiar a resistência ucraniana, que está defendendo
pessoas inocentes agredidas pelo estado russo, e ao mesmo tempo ser contra a
guerra em si?
Como qualquer país, a Ucrânia é uma sociedade diversificada, a
resistência inclui grupos com ideias diferentes sobre os objetivos da guerra. A
esquerda não é forçada a concordar com os objetivos da guerra. Aparentemente, o
governo ucraniano está seguindo a ala de extrema direita do movimento
nacionalista ucraniano.
Até alguns anos atrás, uma versão diferente do nacionalismo
ucraniano estava no poder, disposta a falar de neutralidade, de autonomia para
as partes da Ucrânia cuja língua é o russo, de garantias de que o porto militar
russo de Sebastopol, no Mar Negro, permaneceria nas mãos da Rússia em vez da
Otan. Nos últimos dez anos, os objetivos do movimento nacionalista ucraniano se
tornaram mais radicais.
Não é nosso dever estar do lado de um país específico. Acho que o
principal objetivo da esquerda deve ser evitar a guerra. Acabar com a guerra.
Somente se não houver guerra não haverá morte de pessoas inocentes.
Também há pessoas inocentes sendo mortas do lado russo. Por causa
dessa loucura absoluta de uma guerra em que todos, até o outono de 2021, antes
do início da guerra, sabiam basicamente o resultado provável: a Crimeia permaneceria nas mãos da Rússia,
talvez por dez anos, e depois haveria um plebiscito; haveria algum
tipo de autogoverno para as partes da Ucrânia que falam russo; a Ucrânia
permaneceria fora da Otan e receberia garantias de segurança internacional que
deveriam protegê-la de novas agressões russas.
A esquerda deve apoiar a paz, não um país específico e não um
governo específico do país. Em meu último trabalho sobre macrossociologia,
tornei-me forte defensor do estado-nação.
O estado-nação soberano, especialmente para populações pequenas, é
uma ferramenta muito importante para a democracia. Portanto, a Ucrânia deve ter seu próprio estado. Como esse
estado deve se encaixar na arena internacional é uma questão diferente.
Há dois grandes romances russos: "Guerra e Paz" e
"Crime e Castigo". Uma guerra é sobre "Guerra e
Paz", não sobre "Crime e Castigo". A ideia de que essa guerra
deve terminar com Putin julgado em Haia é suicida. Isso poderia matar não
apenas os ucranianos, mas muitos russos e outras pessoas. Se essa é a paz que
queremos, eu certamente discordaria disso.
O relacionamento entre países fortemente armados, quer queiramos
ou não, não é pessoal, não é algo que possa ser discutido em termos de vilão e
mocinho. Ao longo dos séculos, os países desenvolveram técnicas para
estabelecer a paz. Parte disso são acordos sobre quem tem permissão para posicionar tropas, sobre inspeção mútua de
forças armadas e controle de armamentos.
A pré-história da guerra ucraniana foi uma época em que todas as
instituições poderosamente calibradas do período da Guerra Fria foram
desmanteladas e negligenciadas.
No artigo "Uma Ordem Bipolar?", publicado no Sidecar em
1º de maio passado, o senhor lembra que o capitalismo "se transformou e se
reformulou de forma mais fundamental e eficaz do que nunca na esteira das duas
grandes guerras do século 20". Será que os EUA colocaram em movimento uma
estratégia de guerra tendo isso em mente?
Em nenhum país há mais pessoas pensando em como usar as Forças Armadas:
40% dos gastos militares globais são feitos nos Estados Unidos. Em 2010,
os gastos militares anuais americanos foram
19 vezes maiores do que os russos. Existem essas enormes burocracias militares,
com pessoas pensando, livremente, sobre como usar isso.
Livremente por quê? Porque os Estados Unidos têm uma vantagem
maravilhosa, não é possível vencer uma guerra contra eles. São como uma ilha
enorme, um continente, e têm apenas dois vizinhos: o Canadá, quase um estado
americano, e o México, onde suas tropas já estão presentes, presumivelmente
para combater o tráfico de drogas.
Ao contrário, a China tem cerca de 20 países vizinhos. Por sua
doutrina militar oficial, os Estados Unidos querem ser capazes de realizar duas
guerras ao mesmo tempo, nas partes Oriental e Ocidental do globo.
No caso do Afeganistão, eles puderam ir a um lugar, gastar
quantias inacreditáveis em 20 anos e depois, simplesmente, voltar para casa.
Alguém pode esperar que o Talibã vá aos Estados Unidos se vingar?
Absolutamente impossível. Imagina-se o exército iraquiano marchando até Washington e
exigindo que George W. Bush seja entregue ao Tribunal de Haia?
Deve haver pessoas pensando em atacar a China agora, quando os EUA
ainda estarão em uma situação com chance muito boa de vencer. Quando vencerem,
poderão cancelar toda a dívida com a China e criar uma nova ordem monetária
global. Teríamos de volta 1990, quando a Rússia e a China votavam com os
Estados Unidos na ONU. Deve haver uma tentação de pensar sobre isso, o que é
muito perigoso.
Joe Biden, com apoio de Bernie Sanders, deve enfrentar Donald
Trump novamente nas urnas em 2024. Como analisa o governo Biden até agora?
Quando Biden assumiu, tornou-se linha-dura no que diz respeito à Ucrânia de
uma forma que ninguém esperava, depois de ter saído do Afeganistão sem avisar
os aliados. Os militares alemães que estavam no Afeganistão ficaram atônitos ao
saber que os americanos sairiam no dia seguinte. Eles simplesmente fazem o que
querem.
Portanto, o que Biden fará depende muito de saber se os Estados
Unidos estão seriamente dispostos a entrar em guerra com a China. Caso
contrário, eles podem permitir que os chineses ajudem a estabelecer algum tipo
de cessar-fogo na Ucrânia, ou seja, incluir a China no sistema euroasiático.
Os russos não podem mais tomar nenhuma decisão sem o apoio dos
chineses. A China continua dizendo ao mundo que se opõe totalmente ao uso de armas nucleares, e que não está
vendendo armas a nenhum país envolvido em operação militar. Isso significa que
eles tiraram, na opinião dos russos, a última ferramenta para se defenderem
contra um exército ucraniano que entre na Rússia: as armas nucleares táticas.
Os russos precisam urgentemente de armas melhores, mas não as
obtêm dos chineses. Então, os chineses poderiam ser mediadores entre a Ucrânia
e a Rússia ou entre os Estados Unidos e a Rússia. Se Biden quisesse isso, acho
que poderia conseguir, mas ao preço de não poder mais atacar a China. Seria um
pacificador. Em outras palavras, não sei o que Biden vai fazer.
Meu medo é que ele realmente planeje atacar a China, com a ajuda
da Otan. Há alguns dias, o governo alemão prometeu a Biden enviar dois grandes
navios de guerra para as águas do sul da Ásia, perto da costa chinesa.
Imagine, a marinha alemã na costa da China?! Vocês me perguntam o
que espero? Só posso dizer que não estou mais esperando nada, exceto surpresas
bizarras.
*Professor titular do Departamento de Ciência
Política da USP e professor visitante do King’s College London (Inglaterra). Autor,
entre outros livros, de "Os Sentidos do Lulismo" e "O Lulismo em
Crise
**Pesquisador associado do Arnold Bergstraesser
Institut da Universidade de Freiburg (Alemanha), do Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania (Cenedic-USP) e do International Research Group on
Authoritarianism and Counter-Strategies (IRGAC)
Muito bom,sensato e lúcido o comentário de Edson Luiz.
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